Estará a China a ameaçar a supremacia do dólar?

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John C. Edmunds, Frederic Chartier e Mark Lapham

A Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas, realizada em 1944 em Bretton Woods, nos Estados Unidos, redesenhou por completo o sistema financeiro mundial, depois de o antigo sistema ter sido despedaçado por duas guerras mundiais e uma década de depressão económica global.

O dólar passou a ocupar o centro desse novo sistema, como única moeda convertível em ouro. Por acordo internacional, o dólar tornou-se então a moeda dominante no mundo, a única moeda de reserva viável, literalmente “tão valiosa como ouro”.

Desde 1944, a supremacia do dólar norte-americano só algumas (poucas) vezes foi seriamente questionada. No final de 2013, 44 por cento das transacções mundiais eram feitas em dólares, praticamente o mesmo valor (45%) registado em 2001. O Euro e o Yen japonês ocupam os distantes 2º e 3º lugares, com 17 e 12 por cento das transacções mundiais, respectivamente. Mais: 62 por cento das reservas mundiais de moeda e 90 por cento das transacções de bens públicos são dominadas pelo dólar.

O simples facto de o mundo girar sobre dólares proporcionou aos Estados Unidos do pós-guerra uma arma de política externa única e poderosa: a capacidade de isolar, enfraquecer ou até fazer falir qualquer organização ou país, apenas privando-o da possibilidade de fazer transacções em dólares.

A menos que seja feito em numerário, qualquer negócio ou transacção efectuado em dólares precisa de autorização do sistema bancário norte-americano; o governo dos EUA tem poder legal para impedir qualquer pagamento em dólares que considere indesejável, bastando-lhe para tal dar instruções às instituições financeiras norte-americanas para não o processarem.

Exemplo flagrante: desde 2006, as sanções dos EUA contra o Irão reduziram drasticamente as exportações de petróleo iraniano e afectaram o crescimento económico do Irão ao impedirem este país de usar dólares norte-americanos nos seus acordos financeiros. Mais recentemente, esta capacidade de intervenção dos Estados Unidos foi usada de forma visível e efectiva, embora menos acentuada, para pressionar a Rússia a encontrar uma solução para a crise ucraniana.

Crescimento fenomenal

O poder de intervenção dos EUA revelou-se de forma ainda mais cortante no ano passado, quando o banco BNP-Paribas teve de aceitar pagar quase nove mil milhões de dólares de multas relacionadas com transacções envolvendo o Irão, Cuba e outros países “bloqueados” feitas contra as instruções expressas do governo norte-americano.

O BNP-Paribas, o quarto maior banco do mundo, com sede em Paris, não é de todo um banco “americano”. A ameaça de ser excluído das transacções internacionais em dólares foi suficiente para que esta entidade “estrangeira” tivesse de pagar avultadas multas: quem não pode fazer negócios em dólares, simplesmente não pode fazer negócios!

Este domínio completo da estrutura financeira mundial pelo dólar sobreviveu ao colapso da conversão para ouro determinado pelo Sistema de Bretton Woods em 1971, à criação do Euro e até à crise financeira mundial de 2008.

Mas será que tal domínio está finalmente a ser ameaçado pelo massivo poder económico e financeiro da China?

A nossa resposta ponderada é: ainda não.

O crescimento fenomenal da economia chinesa é, provavelmente, o mais importante factor de condicionamento da história do século XXI. Desde as reformas económicas introduzidas por Deng Xiaoping nos anos 70 do século passado, as exportações chinesas passaram de 7,6 mil milhões (ou biliões) de dólares em 1977 para 2,2 triliões em 2013, ultrapassando neste ano os Estados Unidos em termos de valor total de comércio internacional. As reformas permitiram ainda o massivo investimento estrangeiro directo na China, visando a exploração da mão-de-obra barata e uma economia de consumo potencialmente gigantesca.

Contudo, ao mesmo tempo que liberalizaram a conta corrente do país (a importação e exportação de bens e serviços), as autoridades chinesas mantiveram, com pequenas excepções, um controlo apertado sobre a circulação de capital que entra e sai da China, criando assim uma disparidade entre uma economia grandemente dependente das exportações e uma moeda controlada e em grande medida inconvertível.

Confiança

Mais recentemente, segundo sabemos, a China começou a dar pequenos passos com vista à eventual internacionalização da sua moeda, o Yuan. O Yuan deixou de ter uma taxa de câmbio fixa face ao dólar norte-americano em 2005, e desde então a China tem vindo a negociar contra um “pacote” de moedas internacionais. As taxas de juro chinesas têm podido crescer para índices próximos do seu “real” valor.

As companhias chinesas podem agora negociar em Yuans, o que significa que uma parte do enorme volume de negócios internacionais da China está a transitar do dólar para o Yuan. De facto, algumas empresas estrangeiras (isto é, norte-americanas) já estão a realizar dinheiro em acções dominadas pelo Yuan.

Tudo isto está a fazer da China uma presença crescente nos mercados financeiros mundiais e na economia mundial, em geral. Significa isto que o Yuan chinês está pronto para disputar a supremacia ao dólar norte-americano?

Para tanto, o Yuan precisaria de beneficiar de uma convertibilidade verdadeira e irrestrita (excepto em casos punitivos, como o do Irão, mencionado atrás). Ora, o histórico de micro-gestão financeira do regime chinês indica que tal convertibilidade sem restrições está longe de ser iminente.

Igualmente importante: um desafio do Yuan ao dólar norte-americano requereria o reconhecimento, por parte dos principais países negociadores, de que o Yuan se tornou já uma moeda de reserva viável. Por outras palavras: está o mundo pronto a confiar na China como um centro apolítico e inviolável do sistema bancário mundial de mercado livre?

Aqui, de novo, a nossa resposta ponderada é: ainda não…