ALEXANDRE FRANCO DE SÁ
Professor universitário
Uma das coisas mais interessantes nesta “crise política”, em que um líder partidário derrotado se vai tornar primeiro-ministro, evitando o costume cruel de ser corrido para exorcizar a derrota, é ela também permitir pensar a democracia portuguesa a partir de uma crise que o regime teima em ignorar. Refiro-me à crise da representação. Trata-se de uma crise silenciosa, uma crise sempre abafada pela urgência das outras, uma crise normalizada pelo “viver habitualmente” do regime, uma crise aludida mas não discutida; e ainda assim uma crise.
No passado dia 10 de Novembro, no Parlamento português, confrontaram-se duas representações: uma, a do Presidente, que o habilitava a nomear um Governo; outra, a do Parlamento, de cuja tolerância o Governo depende, que o legitimava a derrubá-lo. Quer isso dizer que, caso um conflito entre estas duas representações ocorra, a do Parlamento prevalece.
O que obriga a perguntar a razão por que é assim. E a resposta canónica a esta questão poder-se-ia formular da seguinte maneira: porque o Presidente representa o “povo” de forma simples, como mera unidade, enquanto o Parlamento representa a sociedade de forma complexa, na sua pluralidade.
O que aconteceu no Parlamento português neste dia foi apenas mais uma demonstração do quanto esta resposta parece hoje caricatural. Não me refiro ao conteúdo ou ao resultado, que foi a queda do Governo, mas ao anúncio antecipado desta queda e à conversão de toda a discussão numa formalidade vazia.
A crise crescente da representação parlamentar foi analisada em páginas brilhantes desde o começo do século XX. E foi também mostrada por eventos históricos significativos, como a nomeação de Hitler como Chanceler da Alemanha em Janeiro de 1933 (curiosamente, na sequência de comunistas, nazis e demais socialistas se terem entendido para derrubar um governo “direitista e reaccionário” proposto pelo Presidente, logo na primeira sessão do Parlamento após as eleições).
No caso português, esta crise desenvolveu-se, antes de mais, na forma de uma progressiva transformação das eleições legislativas naquilo a que Adriano Moreira chama um “presidencialismo do primeiro-ministro”. Com a conivência dos grandes partidos e da imprensa, estas eleições tornaram-se numa espécie de luta de galos pouco edificante em que há um vencedor e um vencido. Sem que a questão da legitimidade se ponha, é natural que o eleitorado do vencedor sinta agora como um golpe ele ser apeado do poder.
É claro que, diante dos resultados que obteve, também é natural que António Costa, cuja campanha eleitoral não se cansou de pregar a chamada bipolarização e de apresentá-lo como um dos galos a concurso, mudasse de táctica para salvar a pele. Seria mesmo inevitável fazê-lo. O que já parece excessivo é não o fazer com decoro, e insistir na ideia de que a contestação à sua solução governativa não consiste senão num mero “ressabiamento” que passará em pouco tempo. Ele sabe que não é o caso.
Ao longo dos nossos anos de democracia, a crise silenciosa da representação intensificou-se também pela manutenção dos nossos círculos eleitorais anacrónicos, que desrespeitam o voto de milhares de eleitores ao torná-lo “inútil”, reduzem artificialmente a pluralidade dos partidos presentes no Parlamento e convertem os seus deputados numa massa obediente, achada de entre listas cozinhadas pelos pesos, influências, fidelidades e pressões presentes nos partidos.
Ora, esta crise normalmente invisível torna-se sobretudo visível em momentos como a situação política que vivemos, quando as decisões são tomadas puramente a partir da ‘Realpolitik’ partidária. Nestas ocasiões é inevitável voltar a perguntar por que razão, afinal, a representação parlamentar, em caso de conflito, deve prevalecer sobre as outras. Responder que são assim as regras constitucionais está certo, mas é apenas responder “porque sim”.
Como resposta substancial só encontramos a ideia de que esta representação supõe, como fundamento da sua superioridade, abertura, pluralidade, pensamento, discussão, confrontação, argumentação, diferença, espírito crítico e liberdade. Se a prática parlamentar se assemelhasse minimamente a isto, a simples sugestão de “disciplina de voto”, a mera veleidade de transformar um deputado num funcionário disciplinado sob as ordens do seu directório partidário – facto sem o qual o episódio do passado dia 10 não sucederia – seria sentida como uma ofensa inaceitável.