diabo

O ex-primeiro-ministro deixou a cela nº 44 da cadeia de Évora para se instalar, em regime de prisão domiciliária com vigilância policial, no nº 33 da Rua Abade Faria, em Lisboa. Mas não vai ficar parado…

É no nº 33 de uma Rua Abade Faria escavacada pelas obras, onde nem sequer o Mercedes topo-de-gama de Mário Soares pode circular com dignidade estatal, que o antigo detido da cela nº 44 da cadeia de Évora prepara, desde sexta-feira passada, um contra-ataque que está a deixar o líder socialista António Costa à beira de nova crise de nervos.

Curiosamente, a artéria da zona do Areeiro, em Lisboa, onde José Sócrates agora reside leva o nome de um clérigo que, tal como Costa, é de origem goesa. Foi a prática do hipnotismo que tornou célebre o Abade José Custódio de Faria, homem do século XVIII também dado à conspiração contra a presença de Portugal na Índia, o que por sinal o levou a exilar-se em França, onde terminou os seus dias. Uma estátua do extravagante Abade hipnotizando uma donzela perpetua a sua memória numa praça do antigo Estado Português da Índia.

É, pois – dizíamos – numa rua do Areeiro que ostenta o nome deste goês exilado que o antigo primeiro-ministro José Sócrates Pinto de Sousa prepara as suas primeiras entrevistas às televisões nativas. Não que estas tenham andado distraídas desde que, na passada sexta-feira, o Tribunal da Comarca de Lisboa anunciou a transferência de Sócrates da cadeia de Évora para o Areeiro, em regime de prisão domiciliária com vigilância policial. Pelo contrário: à porta do nº 33 estacionam agora, em permanência, equipas de reportagem que registam o mais pequeno movimento nas imediações.

O primeiro inocente a ser apanhado nas teias dos microfones instalados na Abade Faria foi o estafeta de uma empresa de entrega de pizzas ao domicílio, logo no Sábado. Trazia uma dose individual, modalidade “pepperoni com extra queijo”, e foi interrogado pelos infatigáveis repórteres como se trouxesse consigo, escondida na massa cozida, a receita da pólvora seca. Afinal, a pizza destinada a José Sócrates, escrutinada, analisada e debatida à exaustão à porta da rua, acabou por não subir a escada: o pobre estafeta não trazia identificação e, sem ela, os agentes do piquete da PSP não o deixaram chegar à Presença.

Entrevistas na forja

Esta pequena contrariedade gastronómica não impediu, contudo, a empresa de pizzas de propagandear a preferência do ilustre preso domiciliário pela sua “pepperoni” – e a gerência pediu mesmo à clientela, através do Facebook, que inventasse um nome para a crismar devidamente. Houve quem sugerisse “pizza porreiro pá” ou “pizza engenheiro 44”, mas à hora de fecho desta edição a designação mais popular era “pizza põe na conta do Santos Silva”.

Todo este folclore infanto-juvenil pode ajudar a passar o tempo, mas não distrai o antigo líder socialista, que não brinca em serviço. Ao que se sabe, Sócrates prepara intervenções televisivas de grande relevo – desde o minuto em que pós o pé no carro que o transportou de Évora para Lisboa. O conspícuo ‘Diário de Notícias’ adianta saber “que o ex-governante já está a ponderar a que televisões vai dar as primeiras entrevistas – será este o meio escolhido, uma vez que até agora só conseguiu defender-se por escrito, em jornais”. Sendo certo que meros jornais não bastam para o magno contra-ataque do “animal feroz”, apurou-se também que Sócrates “certamente quererá falar da violência cometida sobre ele”, segundo revelou o advogado João Araújo.

Quanto ao ‘timing’, subsistia a cruel dúvida sobre se o ex-primeiro-ministro faria a sua Aparição antes ou depois das eleições legislativas, mas “fontes próximas” já dissiparam qualquer vacilação: “Quem o conhece sabe que não esperará um mês para falar”. O DIABO apurou, por seu turno, que a “Correio da Manhã TV” não se encontra na ‘short list’ das estações televisivas às quais Sócrates gostaria de confiar as suas mágoas.

Costa calado

Quem não parece excessivamente entusiasmado com a perspectiva de ter o antigo líder socialista a fazer “ruído” no espaço público é o actual líder, António Costa. Ao longo dos mais de nove meses que durou a detenção de José Sócrates em Évora, Costa tentou (com algum êxito, reconheça-se) fazer esquecer que tinha sido, num Governo do PS, o braço-direito do actual morador do nº 33 da Rua Abade Faria. Visitou-o uma única vez na cela nº 44 e recusou-se sistematicamente a comentar a prisão do antigo líder.

Já depois de Sócrates ter passado ao regime de prisão domiciliária com vigilância policial, Costa manteve a mesma posição: os repórteres bem têm insistido, mas o candidato socialista à chefia do Governo insiste em que está “focado em questões centrais para o país”. Será interessante ouvir o que o próprio Sócrates pensa sobre a aparente indiferença do antigo discípulo.

Enquanto o pequeno ecrã se enche de nadas sobre o caso (as visitas comovidas no dia em que José Sócrates fez 58 anos, no Domingo, encheram horas de telenovela), a acusação acelera os trabalhos – e, segundo o jornal online ‘Observador’, os investigadores estão certos de que “o cruzamento de provas consolidou os indícios”. Assim, “a acusação pode estar para muito breve”.

Acusação quase pronta

Gilbert Chesterton disse um dia que a comunicação social quotidiana, ao contrário do que parece, é “uma máquina de destruição da memória pública” – pois, com a ilusão da “notícia” de hoje, simplesmente apaga a memória de ontem. Este caso parece ilustrar exemplarmente a máxima do grande pensador: transferido Sócrates para prisão domiciliária (o que em algumas mentes se confunde com “libertação”), parece esquecido o facto de que o antigo líder do PS continua indiciado pelos crimes de fraude fiscal, corrupção e branqueamento de capitais. De resto, nos meios judiciais citados pelo ‘Observador’, as novas medidas de coação sancionadas pelo juiz Carlos Alexandre, mais ligeiras na aparência superficial, “estão a ter uma outra leitura. E essa leitura é simples: a investigação já estará em condições para avançar com o despacho de acusação e fá-lo-á provavelmente antes do prazo decorrente da lei”.

Nesta matéria, a legislação é taxativa: o procurador Rosário Teixeira terá de deduzir acusação até 21 de Novembro, data em que se completa um ano de detenção. Antes, a 19 de Outubro, termina o prazo em que o processo se encontra em segredo de Justiça. Duas semanas antes, Portugal vai a votos para escolher um novo Parlamento e, com ele, um novo Governo.

É neste ambiente de enorme expectativa que, quando António Costa mais precisava de concentrar atenções na sua campanha, José Sócrates se prepara para fazer “ruído” e dominar o espaço público, estabelecendo um perigoso sistema de vasos comunicantes entre o PS, as escolhas eleitorais e um processo por fraude fiscal, corrupção e branqueamento de capitais.

Iludir ou ignorar o risco, para o PS, desta combinação explosiva só seria possível com um dos famosos sonos hipnóticos do Abade goês José Custódio de Faria…