Pierrots, Arlequins e Columbinas

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LVLuísa Venturini

 

Há aqueles dias em que a tristeza mais parece um rio alucinado a transbordar em nós e nós, quais Pierrots de triste sina, meios tontos e às escuras, lá tentamos lidar com ligaduras e tinturas de iodo para os males-do-coração, ainda que nos faltem aquelas sãs virtudes de João-Semana-das-almas, pois ninguém é bom juiz em causa própria.

São dias em que nos atonam as procissões roxas de memórias de todo o género, como uma panóplia de compotas na despensa antiga de uma avó de outros tempos, todas com os seus respectivos rótulos: da exacerbação do “passion fruit” (que, em português, tem o prosaico e desfeado nome de maracujá), ao ternurento doce de tomate, ao surpreendente e rico doce de abóbora gila, aos coloridos e engrainhados de amoras e framboesas, aos sedosos de alperces ou de ameixas – toda uma galeria de naturezas genuinamente mortas.

São dias em que pegamos na Saudade e nas saudades e, num esforço estertorado, pretendemos entrançá-las, tricotá-las, arrumá-las de jeito a torná-las mais conformes, menos avassaladoras, menos sufocantes, e ai de nós se, por uma distracção, nos enredamos com elas na laçada de um ponto de liga e meia. São dias muito estranhos. E é então que a capacidade milagreira dos momentos intima um Arlequim, chegado sabe-se lá donde ou porquê, que, num piscar de olhos, nos acende candelabros, sóis e girassóis ou porque alguém sorri, ou chega um telefonema, ou é uma fotografia que de repente nos acena, ou, tão simplesmente, porque há um cheiro bom a café quente a invadir a casa toda.

E é então que a capacidade milagreira dos momentos intima a nossa Columbina e ouvimo-nos soltar um riso, que nem brinde em honra da vida e de todos os nossos amores, e numa reviravolta de cena nos apercebemos que, por muito que andemos vestidos com longas tranças, ainda sabemos, ainda queremos, ainda podemos, abençoadamente, cantar.