Monumento às vítimas de Júlio César?

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1824

Évora vai inaugurar um monumento às vítimas do Tribunal do Santo Ofício, ou Inquisição! O dia será, segundo o Diário de Notícias, o mesmo em que perante D. João III foi lida a Bula Papal que criava a Inquisição Portuguesa na Sé de Évora.

A Inquisição é um fruto do tempo em que foi criada, em que conceitos como a liberdade religiosa não existiam, eram matéria de Estado. A Inquisição era um instrumento da Igreja no combate à heresia, mas sobretudo um instrumento do Rei no domínio dos seus reinos e na consolidação do seu poder. Os Grandes Inquisidores eram invariavelmente membros da família real, escolhidos pelo soberano e nomeados formalmente pelo Papa, e os crimes não eram estritamente religiosos.

O que espanta no artigo do DN de Sábado passado é a ignorância ou má-fé dos intervenientes, a começar pelo jornal, que classifica a notícia como “Igreja Católica”, como se o assunto fosse de hoje, coloca uma fotografia de João Paulo II, com uma legenda em que se diz que o Papa pediu perdão pela Inquisição, numa notícia que apenas diz respeito a uma inauguração paroquial da Câmara de Évora, algures na praça do Giraldo.

Citam-se dois historiadores, Manuel Branco e Francisco Bilou, nunca se mencionando qual o papel de cada um, não se diz qual é o dia explícito da inauguração, nem a hora! Escreve-se que eram queimadas “esfinges” dos condenados em absência, entre outras barbaridades. O historiador Manuel, citado entre aspas, diz “… ossadas de diversas pessoas que morreram enquanto se encontravam detidas nos cárceres da Inquisição e que foram lançadas para a entulheira como se de um animal se tratasse”. Nem o jornalista nem o “historiador” perceberam o erro de concordância no discurso, entre outras calinadas do texto, como esta, atribuída ao tal “historiador” e também entre aspas: “Nalguns casos foi feita uma esfinge [mesmo, tipo egípcia?] da pessoa para ser queimada na praça pública.”

A ignorância é um facto, a má redacção e a má-fé são evidentes, mas a questão que interessa é a da essência da inauguração. Fala-se de intolerância e liberdade religiosa como se a Inquisição actuasse hoje e não tivesse sido pedida há cinco séculos e introduzida há mas de 450 anos. Compara-se a acção da Inquisição com as crises dos refugiados de hoje, como diz o presidente da Câmara de Évora: «”A intolerância, religiosa ou de outro tipo, é um problema que tem de ser banido da sociedade. Esta iniciativa pretende sensibilizar as pessoas para a importância de conviverem com a diferença”, diz o presidente da autarquia, Carlos Pinto de Sá, lamentando que “se continuem a levantar vozes em torno de valores que julgávamos ultrapassados, como a xenofobia perante os imigrantes ou o terrorismo”».

Acaba o artigo com exemplos que parecem ser paradigmáticos mas que revelam à saciedade o lado útil da Inquisição. Cito: «Destino idêntico teve Luis de la Penha, garrotado e queimado na fogueira em 1626, depois de ter ganho fama como vidente e curandeiro. ‘Benzia enfermos, dizendo orações e palavras em voz baixa de modo que se não podiam ouvir e tinha um livro de quiromancia pelo qual vendo a mão de muitas pessoas dizia e adivinhava coisas que estavam por vir’, registou o inquisidor Francisco Barreto, acusando ainda o réu de ter ‘muitos papéis escritos de sua letra, nos quais se continham invocações do Demónio, sortes para adivinhar, caracteres incógnitos e muitas orações supersticiosas e coisas tocantes à danada arte de magia e feitiçaria’.

Nascido em Espanha, Luis de la Penha foi “denunciado, preso e sentenciado pela Inquisição em 1619”, diz o historiador Francisco Bilou. Libertado uma primeira vez, acabaria por ser novamente preso e, desta vez, condenado à fogueira “porque a Igreja não tem mais que fazer com o réu por usar mal a misericórdia que no primeiro lapso lhe foi concedida”.»

O caso do curandeiro é típico: por andar a burlar pessoas com práticas ditas mágicas foi perdoado uma vez. Depois do perdão, continua na sua vidinha airada de aldrabice e burla e à segunda foi demais. Num mundo em que a pena de morte era usual, penso que se pode afirmar que gozou de muita clemência e não teve respeitinho nenhum pelas Leis do Reino depois de um perdão compreensivo.
Hoje temos figurões que aparecem a ler cartas nas televisões, temos os professores Karambas, temos os homeopatas e outros bruxos e videntes que sacam dinheiro aos néscios. É um tipo de obscurantismo que perdurou, de forma que interrogo: a inquisição hoje ainda teria as suas virtudes?
No caso dos curandeiros, poder-se-ia apreciar vivamente as vantagens do Santo Ofício, isto se evitassem a queima e se aplicassem umas multas ou umas temporadas num aljube qualquer; os tempos mudam e os castigos podiam ser mais civilizados. O que é facto é que ter-se deixado de punir legalmente os curandeiros e bruxos foi um retrocesso civilizacional.

O que ressalta da notícia é o zelo moral da classe de alguns historiadores, um zelo moral pós-moderno, anacrónico, que não consegue ver o tempo da Inquisição como um observador imparcial mas como um juiz moral, um zelo obnubilado pelo ódio à actual Igreja Católica, um ódio de hoje e não de quinhentos anos. Cometem assim o erro capital do historiador, o mesmo erro de quem critica Alexandre ou César por matarem prisioneiros e não respeitarem a convenção dos direitos humanos…