PEDRO SOARES MARTÍNEZ

Dei alguns pontapés na bola, ao tempo da meninice, e sempre reconheci a força social da atracção futebolística nos quadros mundiais da actualidade. Mas nunca fui um entusiasta das respectivas competições, raramente as tendo acompanhado.

Contudo, assisti, ponta a ponta, ao jogo que, no passado dia 10, deu a vitória à equipa portuguesa. E escrevi este artigo porque esse mesmo jogo, por estranho que pareça, me facultou, com impressionante nitidez, a visão integral, embora resumida, da saga portuguesa, através dos tempos, e nem sei se também a antecipação de um futuro que só é completamente incerto quando se renega o passado.

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Com efeito, aqueles onze jogadores, não obstante as diversidades das origens e das feições, achando-se todos envolvidos pelo mesmo estandarte – o das quinas – acabaram por reflectir as mesmas virtudes e os mesmos ideais, que, também outrora, múltiplas e desvairadas gentes revelaram, no prosseguimento das gestas comuns dos empreendimentos portugueses.

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Assim, aqueles jogadores entraram no campo de corpo aprumado e olhar decidido, dispostos a ganhar, e a tudo fazer por isso, sem quebra das regras elementares que cumpria observar, mas também sem excluir a previsão de uma admissível derrota, e sem que esse seu olhar revelasse orgulho desmedido ou desafio de superioridade lançado aos adversários. Eram portugueses e portavam-se como tais, em conformidade com os usos portugueses.

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E, durante todo o tempo do jogo, nem as violências de alguns elementos da equipa adversária, nem as atitudes do árbitro, lograram quebrar a geral compostura, aparentemente calma, daqueles onze jogadores, os quais, pelo seu valor, pela sua perícia, pela sua prudência em face dos riscos, acabaram por saber vencer e por gozar, com legítima satisfação, mas com dignidade e moderação, o seu magnífico triunfo, quando múltiplas circunstâncias haviam de afigurar-se-lhes contrárias, e algumas injustas. Continuavam a ser portugueses, habituados a enfrentar hostilidades e incompreensões, em defesas de teor paradigmático, tanto pela legitimidade das causas como pela correcção dos meios usados.

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O jogo do dia 10, ao arrepio dos complexos de inferioridade que, por vezes, assaltam a comunidade portuguesa, talvez possa contribuir para nos convencermos de que, afinal, continuamos a ser os melhores, conforme sempre fomos. Essa minha convicção nunca me abandonou, sem que se tivesse formado à luz dos sucessos futebolísticos, mas sim na base da análise crítica da nossa História e da História dos outros. Essa mesma análise sempre me apartou dos descrentes da Pátria, ou dos “vencidos da vida”, afinal apenas vencidos pela vacuidade dos sonhos da primeira juventude.

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Sem dúvida que, outros povos, entre eles alguns dos ligados a nós pelas origens étnicas e culturais, se mostram superiores pela capacidade de trabalho, pelos talentos de organização, e até, sobretudo, pela dureza na produção de bens materiais, muito acentuada, nalguns países, a partir do século XVI. A própria amenidade dos climas, alguma avareza dos solos e até a religiosidade tornaram diferentes as gentes da faixa mediterrânica, cuja finalidade primacial não costuma ser a de acumular riquezas.

E essa mesma particularidade suscita e suscitará sempre, nos quadros europeus, fundos desentendimentos e juízos desfavoráveis, por parte de quantos não são aptos para entendê-la. Nem para apreciar as valiosas compensações que da referida particularidade emergem no interesse comum de todas as nações e, sobretudo, das mais próximas.

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A comunidade portuguesa, ainda para além das características gerais da faixa mediterrânica, sempre revelou qualidades únicas, excepcionais, conjugadas com as próprias debilidades e falhas, especialmente pelo que respeita ao espírito de sacrifício, à determinação, à rapidez das adaptações às circunstâncias, ao comedimento, ao espírito de justiça, à generosidade, à compreensão dos outros povos e ao respeito deles. Daí resultou o carácter exemplar de uma colonização que, naturalmente, também teve falhas, mas não deverá ser julgada senão pelo confronto do seu passivo e do seu activo, cujo saldo foi imenso, de harmonia com o sentido português do que seja a globalização à escala mundial, no respeito dos outros e dos seus costumes.

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Possivelmente, já os sábios monges de Cluny se terão apercebido das excepcionais qualidades que concorriam na gente da faixa ocidental da Península, quando, a partir dali procuraram estruturar os reinos cristãos que na Hispânia se estavam formando. Com o tempo, essas mesmas qualidades se desenvolveram pela fidelidade aos ideais da nação, pela relativa moderação das lutas internas e pelo afastamento das questões europeias, que permitiram o esplendor harmonioso dos reinados de D. João III e de D. João V.

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A partir dos finais do século XVIII, porém, a pretensão de nos aproximarmos dos esquemas dos países mais ricos da Europa, lançou-nos no despotismo absolutista e embotou em muitos, sobretudo entre as falsas aristocracias, as qualidades excepcionais que se mantiveram integralmente nas populações, sobretudo nos meios rurais. Mas, por excepcional resistência, essas mesmas qualidades acompanharam os portugueses no decurso do século XX, permitindo-lhes sustentar as campanhas de África, durante 13 anos, através de todas as dificuldades e violências dos adversários, no nosso geral respeito das leis da guerra e do sentido humano que delas não deve apartar-se.

Essas mesmas qualidades portuguesas se manifestam constantemente, na actualidade, através do comportamento dos destacamentos militares portugueses espalhados pelas mais diversos territórios. E ainda o recente, e surpreendente, sucesso do turismo em Portugal, com todas as reservas que possa suscitar, põe em relevo as nossas, também excepcionais, qualidades de adaptação, de trato e de compreensão.

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Essas mesmas qualidades de sempre, as próprias dos portugueses, se revelaram, em Paris, no passado dia 10. Somos realmente os melhores, quando não nos deixamos arrastar pelas modas dos aparentemente prósperos, que nem sempre nos assentam bem. Ou quando somos forçados a competir, fazendo uso de armas escolhidas pelos outros, de harmonia com os seus mais prolongados adestramentos e preferências. Continuamos a ser os melhores. Nos campos de futebol como alhures.

E é tempo de tomarmos consciência disso, com determinação, com moderação e dignidade, sem jactâncias que, por si próprias, já ofenderiam as nossas qualidades de sempre, as quais muito importará conservar. Foi assim mesmo que fizemos em Paris, no passado dia 10.

Por isso vencemos. E continuaremos a vencer, conforme também merecemos, nos mais diversos planos, quando as experiências dolorosas e as nossas mesmas virtudes nos permitirem rasgar as baias que nos vedam a contemplação das vias diversas daquelas que, através dos tempos, interesses alheios nos mostraram como sendo as adequadas às fatalidades atribuídas ao nosso destino.