Ainda o 25 de Abril

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“Ainda o 25 de Abril”, de Silva Cunha, escrutina os actos de Marcello Caetano nos últimos meses do regime deposto em 25 de Abril.

O recente falecimento de Joaquim da Silva Cunha, que foi Ministro do Ultramar e da Defesa Nacional entre 1965 e 1974, aconselha uma releitura do seu importante livro “Ainda o 25 de Abril”, publicado dez anos depois do golpe de Estado do MFA.

Esta obra surgiu na sequência de uma outra (“O Ultramar, a Nação e o 25 de Abril”, de 1977), em que Silva Cunha muito oportunamente pusera em causa alguns actos e atitudes de Marcello Caetano nos seus últimos meses de governo e durante o próprio dia 25. Como Marcello tivesse tentado contestar as dúvidas do seu antigo discípulo, Silva Cunha voltou à carga e aduziu novas revelações e conclusões, que sublinham um raciocínio claro e uma lógica implacável. Não voltou a ter resposta de Caetano.

A relação entre Marcello Caetano e Silva Cunha remontava aos anos 40, quando o primeiro foi mestre do segundo na Faculdade de Direito de Lisboa, e ambos se empenhavam na obra da Mocidade Portuguesa. Ao ser nomeado Ministro das Colónias, em 1944, Marcello convidou Silva Cunha para o seu gabinete. Seguiram, depois de 1947, caminhos paralelos. Enquanto Marcello passava pela presidência da Câmara Corporativa e pelo cargo de Ministro da Presidência, Silva Cunha consolidava a sua carreira académica e tornava-se catedrático. Reencontraram-se em 1961, quando Marcello foi nomeado Reitor da Universidade de Lisboa. A posição que cada um deles assumiu na relação com Oliveira Salazar determinou algum afastamento: Marcello rompeu com o Presidente do Conselho, refugiou-se na sua cátedra e só dela saiu em 1968, quando foi chamado a suceder a Salazar. Por esta altura, já Silva Cunha levava seis anos no Governo: dois como Subsecretário de Estado da Administração Ultramarina e quatro como Ministro do Ultramar.

Ao assumir a Presidência do Conselho, Marcello Caetano fez questão de manter Silva Cunha na pasta. E a razão é simples: era idêntica a visão de um Ultramar integrado no todo Português, beneficiário de um processo económico desenvolvimentista e de uma progressiva preparação de quadros ultramarinos. Nada os fazia, então, divergir.

Foi a partir de 1972, no auge da “experiência spinolista” na Guiné, que os caminhos de Marcello Caetano e de Silva Cunha começaram a separar-se. E é desse processo de afastamento que trata “Ainda o 25 de Abril”, que o antigo Ministro do Ultramar fez publicar dez anos depois da chamada “revolução dos cravos” como obra de maturidade e de ponto final.

Neste seu livro, Silva Cunha expõe, com abundância de pormenores e documentos, alguns “passos em falso” do chefe do Governo deposto em 25 de Abril. Um desses passos refere-se à publicação, em princípios de 1974, do livro do general António de Spínola, “Portugal e o Futuro”, que Silva Cunha (já ministro da Defesa) foi praticamente obrigado a “engolir”, face à aparente desistência de Marcello e ao ziguezaguear tortuoso do general Costa Gomes. Logo depois, Marcello convocou os Ministros com responsabilidades nas campanhas ultramarinas e revelou-lhes que iria consultar a Assembleia Nacional sobre a política portuguesa em África – mas, incompreensivelmente, “esqueceu-se” de avisar o ministro da Defesa. Outros aspectos muito reveladores deste livro referem-se às incongruentes movimentações de Marcello no próprio dia 25 de Abril, quando se refugiou num quartel indefensável (o da GNR no Carmo) e acabou por “entregar o poder” a Spínola, sem ouvir o Governo ou o Presidente da República, Rodrigues Thomaz.