Poder absoluto, quase ditatorial, não é democracia

0
1887

A seguir ao espetáculo degradante de vermos o primeiro-ministro e o presidente da república nomearem um novo magistrado fiscal máximo das contas da nação, de um dia para o outro, sem ninguém, nem que fosse o parlamento, questionar as suas capacidades ou resultados passados, ficaram ainda menos dúvidas de que a justiça Portuguesa fica aquém da de outros países ocidentais e necessita de uma reforma profunda. O próprio antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha de Nascimento, veio na semana passada a público referir a justiça como possível “parceiro privilegiado do jogo político.”

No sentido de melhorar a justiça portuguesa, tem sido discutida uma reforma da nomeação judicial, que seria termos uma eleição de juízes e procuradores do topo feita pela assembleia da república. Infelizmente, essa parece-nos uma reforma desfasada da nossa realidade política portuguesa. Por isso, ao invés disso, temos vindo a propor uma reforma que passe por eleição dos magistrados pela população. 

Isto porque uma reforma em que fossem deputados a escolher magistrados, poderia funcionar numa democracia representativa avançada em vez de uma democracia atrasada, imutável há quase 50 anos com as mesmas personagens e vícios. Não temos, pois, deputados verdadeiramente representativos da população que fossem eleitos pela população local em ciclos unipessoais depois de ganharem primárias, também unipessoais, nos seus partidos ou movimentos locais para serem candidatos.  Só deputados que nos representassem assim poderiam escolher os nossos magistrados por nós.  

Infelizmente, em Portugal o que se passa é que os desejos das populações ou militantes locais dos partidos não contam, pois os deputados são todos escolhidos a dedo pelo líder do seu partido em Lisboa. Um regime primitivo e tribal que resulta em que de facto ter os deputados a escolher juízes e procuradores vai dar exatamente ao mesmo que ter o primeiro-ministro a escolher magistrados para indicar ao presidente da república, pois é o primeiro-ministro que dá ordens à maioria dos deputados por si escolhidos.  

Poder absoluto, quase ditatorial, não normal num Estado que deveria ser plenamente democrático. Esse poder resulta na escolha ou influência não só de magistrados pelos políticos, mas na permanência na assembleia de deputadas como Hortense Martins que vêem casos graves na justiça arquivados com facilidade.  Isto sem a população, que paga quer a política quer a justiça, ter qualquer palavra ou voto unipessoal nas escolhas de tais indivíduos.  

Os exemplos das más nomeações ou despedimentos políticos para as lideranças da justiça abundam e não podem continuar quer por via do primeiro-ministro e presidente quer por via assembleia da república, que iria dar aos mesmos resultados. Tivemos o Procurador-Geral da República (PGR) Pinto Monteiro, das escutas ao seu amigo Sócrates apagadas, nomeado, claro, então pelo dueto primeiro-ministro Sócrates & presidente da república Cavaco.  

A maioria dos deputados, nessa altura, com poucas dúvidas, teria escolhido também Pinto Monteiro, por ordens do primeiro-ministro. Já os eleitores provavelmente teriam era escolhido para PGR um dos patrióticos procuradores de Aveiro que há muito queriam investigar Sócrates, mas eram então barrados em vez de incentivados pelo PGR. Este, juntamente com o então presidente do supremo tribunal de justiça, eram, segundo o código penal, os únicos com poderes para investigar um primeiro-ministro em funções. 

Agora, a reencarnação do mesmo dueto político, por via dos respectivos sucessores, Costa & Marcelo, nomeia como presidente do tribunal de contas José Tavares que, segundo dados do Observador, esteve envolvido nas desastrosas PPPs rodoviárias de Campos, Lino e Sócrates. Os deputados, decerto, a mando do novo primeiro-ministro, também teriam escolhido Tavares. A única diferença é que pelo menos no escrutínio da assembleia da república poderiam surgir algumas perguntas embaraçosas sobre gestão de contas públicas, mas isso não basta. Pelo contrário, provavelmente os eleitores prefeririam manter Vítor Caldeira, que não teve nada a ver com PPPs de Sócrates, pois foi presidente impoluto do tribunal europeu de Contas durante oito anos.   

Os eleitores também teriam provavelmente votado para manter como PGR a muito activa Joana Marques Vidal em vez de, como o dueto Costa & Marcelo fez, a despedirem depois de durante o mandato desta se investigar um grande amigo do primeiro, José Sócrates, e outro grande amigo do segundo, Ricardo Espírito Santo Salgado. Pôr os deputados a escolher estes magistrados iria dar aos mesmos resultados, a mando das chefias políticas: despedir Marques Vidal e escolher a mais discreta e menos activa nos grandes casos de corrupção política Lucília Gago. 

Sobre influências políticas, resta-nos referir o tribunal constitucional, onde a maioria dos juízes é escolhida precisa e infelizmente já pela assembleia da república. Não deveria ser o caso, por todas as razões que explicámos. Além disso, ainda por cima, para esse tribunal os políticos escolhem demasiados amigos ou familiares que têm outras profissões, logo, pouco tempo para dedicar ao tribunal e constituição. 

No entanto, neste caso, porque a constituição deve ser inamovível até ser reformada, também não deveriam ser os eleitores a influenciar juízes. Deveriam, sim, ser os pares ou por carreira judiciária, para termos os melhores constitucionalistas e juristas. Como acontece, aliás, e bem, no supremo tribunal de justiça e nos tribunais da relação (apesar de problemas pontuais no tribunal da relação de Lisboa ligados ao futebol). 

Isto, como aconteceu, também bem, na seleção de procuradores portugueses para o gabinete do Procurador Europeu de investigar criminalidade nos fundos europeus.  Aí o processo foi principalmente internacional e ditado por regras europeias. Apesar de poder ser melhorado, pareceu-nos também melhor processo que escolha política exclusiva. Quaisquer reformas a sério são bem-vindas.

Felizmente, na sua maior parte, os juízes e procuradores são honestos e não são arquivadores por natureza. O problema é que há uma selecção artificial dos líderes dos tribunais principais, feita pelos os políticos portugueses. Os políticos, está demonstrado pelo seu historial, preferem ver no topo os juízes e procuradores mais lentos e quietos, em vez dos melhores e mais rápidos. Sem visão nem forte execução contra a corrupção no topo, não há pressa na base. Se os políticos notarem pressa na base, decapitam o líder, influenciando negativamente a base. 

O irrequieto Vítor Caldeira foi o íntegro presidente do tribunal de contas europeu de 2008 a 2016.  Depois serviu Portugal como presidente do tribunal de contas, mas só quatro anos. Costa e Marcelo despediram-no depois de ele avisar rápida e patrioticamente que as novas regras da contratação pública aumentam “conluio e distorção da concorrência,” isto é, cumplicidades para se contratarem amigos e familiares incompetentes de políticos, em vez dos portugueses mais qualificados.  

O tribunal de contas no passado tinha sido contundente sobre conluios do ministro da administração interna de 2005 a 2007, António Costa, no caso da aquisição dos helicópteros kamov onde se faziam distorções da concorrência, como pagar a milhares de euros à hora voos que afinal não tinham acontecido e pagar prémios de milhões de euros por entregas antecipadas, que afinal tinham sido feitas com anos de atraso. Costa, relembremos, também nessa altura fez o negócio do SIRESP com a PT, BES e BPN, que resultou em 500 milhões desaparecidos do erário público. Agora Costa parece querer ainda fazer desaparecer centenas de milhões dos nossos euros mais rapidamente. No novo orçamento há finalmente um limite de cerca de 500 milhões de euros para o muito que tem desaparecido no novo BES. No entanto, alegrem-se os ministros vindos das juventudes partidárias, os seus amigos, os consortes dos seus amigos: há um buraco negro sem fim nas contas da TAP de milhares de milhões de euros sem fim à vista. 

Os leitores e os Portugueses em geral acham que, perante a possibilidade óbvia de novos assaltos aos contribuintes, devem continuar a ser dois políticos do costume – ou a Assembleia da República por eles – em vez dos eleitores todos a nomear o presidente do tribunal de contas e todos os outros magistrados referidos neste artigo? ■