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O que aconteceu no Congo português em Março de 1961 não pode ser mascarado com eufemismos. A palavra “massacre” é a única apropriada – e os próprios autores se vangloriaram da crueldade com que o executaram.

Saúdo a publicação do livro “O Império da Visão/Fotografia no Contexto Colonial Português (1860-1960)”, com coordenação de Filipa Lowndes Vicente, do Instituto de Ciências Sociais. É um importante contributo para a História da presença portuguesa no Mundo, focando um aspecto pouco estudado dessa História: a construção das representações imagéticas do projecto ultramarino português entre o Liberalismo e o início do terrorismo, representações que, curiosamente, nem sempre acompanharam as várias doutrinas coloniais que foram sendo defendidas e aplicadas pelo Poder ao longo do século em análise.

Se me detenho nesta publicação, é apenas porque, numa das notícias de imprensa sobre o lançamento da obra, deparei com uma afirmação que me deixou atónito. Refere-se a um dos poucos artigos do livro que se debruça sobre a fotografia colonial pós-1960 (o artigo “Angola 1961, o horror das imagens”, de Afonso Ramos).

Num texto publicado num jornal dito de referência, comentava-se que “as fotografias atribuídas aos massacres da UPA no Norte” [de Angola] levantariam “questões éticas ou de autenticidade”. Esta passagem, em que são detectáveis várias reservas mentais, merece um reparo.

As “questões éticas” são compreensíveis hoje: à distância de meio século, podemos debruçar-nos calmamente sobre essas imagens esquecendo o horror humano que foi o ataque massivo da UPA à província portuguesa do Congo, no Norte de Angola, em 15 de Março de 1961. A difusão massiva dessas fotografias, que mostram os corpos trucidados de europeus e bailundos, vítimas por igual da demência homicida dos atacantes, pode hoje ser questionada a frio.

Mas não podemos observar os factos de 1961 com os olhos de hoje e esquecer o quadro político, social e cultural em que ocorreram. E em 1961 a difusão dessas imagens, que chocaram Portugal, não foi questionada, nem por “questões éticas” nem por quaisquer outras. Retratavam apenas o que se passara no Norte de Angola. Convém recordar os factos.

O que se passou

Em meados do século XX, nem o Partido Comunista de Angola (uma simples filial do PCP constituída por uma dúzia de militantes de Luanda) nem os tradicionais oposicionistas republicanos tinham verdadeira expressão em Angola. A única força que agrupava um número considerável de militantes independentistas era a União das Populações do Norte de Angola (UPNA), uma organização de cunho tribalista fundada na segunda metade dos anos 50 e dirigida por chefes Bakongo que, em 1958, a conselho de N’Krumah, amputaram “do Norte” à sua designação e se transformaram em UPA.

Esta organização tinha sede na capital do Congo belga, Léopoldville (crismada Kinshasa após a independência, em Junho de 1960) e tinha como líderes Manuel Nekaka e seu sobrinho, Holden Roberto, que reclamavam ter ascendência real e se propunham restaurar o Reino do Kongo.

Em 1959, presumindo poder controlar o movimento e assim evitar que o independentismo angolano ficasse refém da União Soviética, a administração norte-americana decidiu apostar na UPA – e contratou Roberto com uma avença de 900 dólares mensais. Roberto, no entanto, manteve contactos com a União Soviética, a China e vários países africanos que já haviam alcançado a independência, queixando-se sempre de não receber deles o apoio monetário e material que reclamava.

Ao contrário do que por vezes se afirma, a UPA não teve participação directa no surto grevista de Janeiro de 1961 nas plantações algodoeiras da Baixa de Cassange (um movimento aparentemente espontâneo e sem direcção política) ou nos ataques de 4 de Fevereiro de 1961 em Luanda (organizados pelo cónego Manuel Mendes das Neves e manipulados pelo PC angolano, depois conhecido como MPLA).

Pelo contrário: foi para não perder o controlo das fileiras independentistas que a UPA decidiu agir na única zona de Angola que conhecia e onde se movimentava com relativa facilidade: a província angolana do Congo, mais tarde dividida em dois distritos, Congo e Zaire. E fê-lo também, a conselho norte-americano, para aproveitar os debates que decorriam na ONU, nesse preciso momento, sobre as províncias ultramarinas portuguesas.

Na madrugada de 15 de Março de 1961, bandos da UPA atacaram em simultâneo zonas fronteiriças do extremo Norte de Angola, vindos do Congo ex-belga e, em grande parte, contratados nos “bas fonds” de Kinshasa, armados de catanas e canhangulos e drogados para que não temessem as balas dos europeus. Nas roças e localidades por onde passaram, torturaram e mataram as famílias europeias que encontraram, com sinistros requintes de malvadez.

Foi monstruoso o grau de inumanidade dessas hordas, não só sobre homens europeus e bailundos mas também sobre mulheres e crianças. Holden Roberto, chefe da UPA, reconheceu várias vezes, em entrevistas, a crueldade dos ataques de Março de 1961, gizados por si mesmo e por Franz Fanon.

Essa crueldade está documentada nas inúmeras fotografias publicadas na imprensa da época e incluídas em livros que passavam de mão em mão, bem como em filmes que a RTP só parcialmente exibiu.

Crime hediondo

Os ataques foram então justificados como “resposta” à repressão da greve nas plantações algodoeiras da Baixa do Cassange, dois meses antes, mas a justificação não convenceu, por duas razões: primeira, os ataques foram planeados a partir de Dezembro de 1960, quando ainda nem sequer haviam ocorrido os assaltos em Luanda ou as greves no Cassange; segunda, os ataques partiram do Congo ex-belga e visaram concretamente o Alto Congo português, bem longe portanto das zonas algodoeiras e com nula participação dos trabalhadores do algodão.

Talvez a existência de testemunhos fotográficos das atrocidades cometidas seja incómoda para certas mentes “politicamente correctas”, para as quais um massacre cometido em nome de uma ideia é condenável, mas já não o é se cometido em nome de outra ideia.

Seja como for, em relação à generalidade dos testemunhos fotográficos sobre os acontecimentos de 15 de Março, não há a menor dúvida de “autenticidade”. É possível que uma ou outra imagem tenha sido retocada em laboratório, mas há centenas delas (e quilómetros de filme, de impossível manipulação na altura) a atestar um crime hediondo que vitimou milhares de pessoas.

Encontrava-se então em Angola uma equipa de reportagem da RTP, que logo partiu para o Norte e chegou às zonas fustigadas nos dias seguintes, recolhendo os primeiros testemunhos e captando imagens dos destroços que encontrou. Pela autenticidade dessas imagens falaram os jornalistas Horácio Caio e Neves da Costa, o realizador José Elyseu e o operador de imagem Serras Fernandes, que constituíam a equipa.

Poucos dias depois chegaram ao Norte de Angola muitos outros jornalistas, radialistas e cineastas, entre eles o grande Augusto Cabrita, cujas ideias de esquerda nunca o impediram de contar a verdade.

Por mil palavras

Falar, pois, de “questões éticas” no que se refere à difusão de testemunhos gravados a quente em 1961 é pretender avaliar uma situação de há 53 anos com os critérios de hoje; e questionar a “autenticidade” dos testemunhos fotográficos desses dias negros é pôr em dúvida o sofrimento que muitos sentiram, viveram, testemunharam e condenaram em Março de 1961 e que faz hoje parte, como matéria provada e confirmada, da História Política.

Podemos usar muitas aspas distanciadoras ou expressões higiénicas como “fotografias atribuídas aos massacres da UPA”, como se elas pudessem ser atribuídas a outra coisa.

O que se passou no Congo português em Março de 1961 não comporta eufemismos: gostem ou não, foi mesmo um massacre o que a UPA perpetrou então em Angola.

O “alegado” autor também dispensa as aspas, pois ele próprio o confirmou, no que foi secundado por alguns dos facínoras que participaram nos ataques e que muitos anos depois os relataram, com repugnante cópia de pormenores, na série televisiva de Joaquim Furtado sobre as guerras de África.

Se há casos em que uma imagem vale por mil palavras, este é um deles.