Por um mero acaso, hoje encontrei a Isadora. Não estava com ela há uns bons pares de anos. A última vez que a vi foi numa coincidência muito breve, entre ensaios, num estúdio, mas mal deu para mais do que meia dúzia de palavras. Tirando isso, só mesmo uma que outra fotografia me foi arejando as recordações.
Passado todo este tempo, fiquei a saber que continua numa roda viva pelo mundo, ocupada a inspirar a sua fundação e as suas escolas. É óbvio que quase trocámos uma cúmplice piscadela de olho, pois, embora reconhecida a Lori Belilove, não a senti muito confortável com o facto de, nesta geração, as suas Isadorables se terem transformado em Beliloveables…
Pareceu-me ver-lhe alguma malícia na expressão quando percebi que, como na sua juventude, arvora um prazer renovado ao vaguear por terras aqueias e que jamais deixará de ter por perto a velha écharpe, tão rubra quanto ela, nas suas próprias palavras.
Ainda sobressai o porte altaneiro de outrora, embora uma sombra espessa lhe tenha fixado residência no olhar. Mantém a irreverência aliciante, as mesmas profundas convicções, a mesma subversão íntima e o contraste quase doloroso entre uma certa declinação de ingenuidade e outra de sabedoria.
Forçosamente, repetidamente, assoberba-me a dimensão trágica da sua vida e torno a interrogar-me sobre a qualidade de uma lucidez que a deixa equidistante dos paraísos e dos infernos em que não crê, mas que vive ou bebe pela malga dos gestos mais antigos, das pulsões mais sagradas. “Se eu soubesse explicá-lo, de que me valeria dançá-lo?”, continua a ser a pergunta que ressoa através do tempo.
Seria eu uma garotinha quando conheci a Isadora. Marcou-me a alma qual ferro em brasa, qual dança em brasa a aferrar-se ao meu corpo. Durante anos, deixei-me andar pela mão desse fascínio. De quando em quando ainda a procuro e é-me um regalo reencontrá-la, seja qual for o recanto, o pretexto ou a cor do dia, mesmo que, tal como dizia a minha amiga Constança Laura, seja sempre entre véus, entre véus, entre véus…
Nunca foi bem aceite, nunca se preocupou com isso. A sua verdade mereceu-lhe tudo: “O que me interessa fazer é encontrar e exprimir uma nova forma de vida. Descobri a dança. Descobri a arte que tem andado perdida há dois mil anos. O meu lema: sem limites”.
Viva a Duncan! Viva! Sim!