O tabu de Centeno

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Com o mandato de presidente do Eurogrupo a terminar a 13 de Julho, dentro de escassos dois meses, Mário Centeno mantém-se misteriosamente tranquilo. É sabido que a recondução ou substituição na presidência do órgão que reúne os ministros das Finanças da União Europeia é, por definição, um passo que requer complexas negociações entre os Estados-membros. Nem há conhecimento em Portugal de que tais negociações tenham começado, nem Centeno parece inquieto com o assunto. “Posso sair ou posso ficar, ainda não tomei uma decisão”, disse ele há dias em entrevista à TSF.

Mas a história que Mário Centeno conta está muito mal contada. O tema foi agora retomado em força depois de o jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung ter escrito que “a saída de Mário Centeno da presidência do Eurogrupo é, cada vez mais, uma certeza”, já que “vários ministros das Finanças da União Europeia estão cada vez mais insatisfeitos” com a sua prestação.

A insatisfação, ao que se rumoreja em Bruxelas, vem de há muito. Mas a gota que fez transbordar o fel das “fontes” não identificadas que o jornal alemão cita foi a videoconferência do Eurogrupo realizada em 8 de Abril, que o Frankfurter Algemeine descreve como “um pesadelo”.

Segundo o jornal, “o português está sempre mal preparado e, ao contrário do seu antecessor, é incapaz de liderar discussões e encontrar compromissos”. O texto, assinado por Werner Mussler, um dos mais credenciados correspondentes de imprensa em Bruxelas, cita “diplomatas da União Europeia”.

“Sentados no escuro”

Na videoconferência de 8 de Abril, “os ministros discutiram infrutuosamente sobre um pacote de ajuda” para combater os efeitos da crise da Covid-19 “durante 16 horas”. O comportamento da equipa de Centeno é também criticado: “Os portugueses interromperam repetidamente a sessão para discussões individuais e literalmente deixaram os outros participantes sentados no escuro durante horas”, refere Mussler. “O facto de os ministros terem chegado a um compromisso, dois dias depois, deve-se inteiramente à intervenção da chanceler Angela Merkel e à do presidente francês Emmanuel Macron, bem como às negociações preliminares entre Scholz e seu colega francês Bruno Le Maire”, adianta o jornal alemão.

Em Lisboa, o Ministro das Finanças comentou o artigo do jornal dizendo apenas que “as notícias falsas caem no melhor dos tecidos”. Centeno frisou ainda que o diário alemão não identifica qualquer fonte, tentando assim descredibilizar o artigo. O ainda presidente do Eurogrupo insiste numa possibilidade que já ninguém em Bruxelas admite: “Irei tomar e comunicar a minha decisão sobre se vou candidatar-me a um segundo mandato na devida altura. E isso ainda não aconteceu”.

Os rumores sobre a saída de Mário Centeno do Eurogrupo ouvem-se há vários meses nos corredores da União Europeia e têm sido motivo de frequentes comentários. Em Abril o tema voltou a ser ventilado, e nessa altura a Ministra das Finanças espanhola, Nadia Calviño, era apontada como favorita à sucessão. Esta opção constituiria uma transição suave, já que uma eventual candidatura de Calviño beneficiaria dos mesmos apoios geográficos e partidários. Por outro lado, a ministra espanhola conhece bem os meandros de Bruxelas, tendo sido Directora-Geral do Orçamento da Comissão Europeia entre 2014 e 2018.

Questionado sobre se a continuidade no Eurogrupo poderá estar relacionada com a continuidade na pasta das Finanças em Portugal, Centeno respondeu que são “duas decisões diferentes”. Uma vez mais assumiu que são “decisões pessoais”, mantendo também o tabu que corre há vários meses sobre a sua saída do Executivo de António Costa.

“Comunicação”

Na última semana, a crescente falta de sintonia entre o Ministro Centeno e o chefe do Governo do PS ficou à mostra de uma forma dramática quando, no Parlamento, a deputada da extrema-esquerda Catarina Martins defendeu que não deveriam ser feitas novas injecções de capital no Novo Banco enquanto não fossem conhecidos os resultados da auditoria que está a decorrer sobre a gestão da instituição. Em resposta, Costa foi peremptório ao garantir que não haveria transferências enquanto não terminasse esse processo.

Simplesmente, a garantia de Costa não tinha correspondência na realidade: à hora em que respondia à deputada bloquista, já 850 milhões de euros tinham sido transferidos para o Novo Banco pelo Ministério das Finanças, que se limitara a accionar uma injecção de dinheiro prevista no contrato entre o banco e o Estado. António Costa alegou desconhecimento da transferência e pediu desculpa pelo erro. 

As orelhas de Mário Centeno ficaram a arder: a transferência podia estar programada, mas não é concebível que um tão elevado valor fosse movimentado sem que previamente o Ministro e o chefe do Governo se pusessem de acordo. Sobretudo atendendo ao melindre político que envolve o tema. 

Mais uma vez, Mário Centeno reagiu de forma politicamente autista: “Pode ter havido erro de comunicação, mas não houve erro das Finanças”. Seja como for, o incidente azedou ainda mais as relações entre Centeno e Costa, gerando de novo especulações sobre uma iminente saída do Ministro das Finanças. Ainda assim, não se pode excluir inteiramente a possibilidade maquiavélica de Costa, tendo sabido da transferência dos 850 milhões, ter-se feito de novas para deixar Centeno em xeque.

BdP e Orçamento

Para onde irá o Ministro das Finanças se, como se diz, deixar o Governo em Portugal e o Eurogrupo em Bruxelas? Há muito que se fala na hipótese de vir a assumir o cargo de Governador do Banco de Portugal. O actual titular, Carlos Costa, termina o mandato em Julho deste ano – e Centeno já comentou que “o que é canónico é que haja substituição no final do mandato”, acrescentando: “algum tempo antes vamos falar sobre isso, é uma decisão que cabe ao Governo, temos de ver isso no Governo”.

Mas, na realidade, a decisão, sendo formalmente do Conselho de Ministros, está nas mãos de António Costa. E torna-se óbvio que o Primeiro-Ministro só dará o cargo a Mário Centeno se este “sair a bem” do Executivo. Caso contrário, o actual Ministro teria de regressar ao seu antigo posto de técnico superior do Banco de Portugal. 

Antes de tudo isso, Centeno terá de apresentar na Assembleia da República um Orçamento Suplementar, tornado ainda mais indispensável pela crise originada pela pandemia. O governante salienta que não se trata de refazer todo o Orçamento, mas sim de “adequar os ‘plafonds’ orçamentais às medidas que estamos a adoptar e que pensamos adoptar”.

Os custos da pandemia na Economia e nas Finanças Públicas estão a ser avaliados, embora ainda com um elevado grau de incerteza. O Ministro das Finanças estimou desde já uma perda de receita de 10 mil milhões de euros este ano, e admite que terão de ser “repensadas” medidas previstas para 2021, como aumentos na Função Pública. ■