Falta de estratégia e a surpresa dos fidalgos

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O recente descrédito do Governo de António Costa, de ministros, de secretários de Estado e de autarcas do PS é apenas um sintoma de um problema maior que resulta da ausência de uma estratégia nacional destinada ao desenvolvimento do país. Por exemplo, o caso da secretária de Estado do Turismo que apoiou com milhões de euros a empresa para onde foi trabalhar revela, para além da má qualidade da senhora, o apoio do Governo a um sector de actividade que não deveria ser apoiado, o que resulta do Governo não ter definido uma estratégia no PRR (Plano de Recuperação e de Resiliência) como parte dos objectivos a atingir pelo país.

Sobre esta questão de estratégia, participei no Japão, em 1995, num curso para empresários, onde tomei conhecimento da estratégia do Japão definida em 1946 e reformulada em 1956 para o futuro daquele país, que colocava a “tecnologia” como o grande objectivo em 1946 e a “inovação tecnológica” em 1956. Estratégia que esteve na base do sucesso do Japão após o desastre da sua participação na guerra.

Impressionado pelo exemplo japonês, tentei durante anos e sem sucesso junto do governo de António Guterres, em dois congressos do Partido Socialista e num congresso da SEDES, uma definição estratégica semelhante. Todavia, só através da Associação Industrial Portuguesa (AIP), e com a preciosa ajuda do Professor Veiga Simão e do Dr. Jaime Lacerda, no contexto da Carta Magna da Competitividade da AIP publicada em 2003, foi colocada uma síntese estratégica, que mais tarde deu origem a um livro que publiquei com o título “Uma Estratégia para Portugal”.

Essa definição estratégica de meia página apontava o seguinte: “O factor humano qualificado, culto e motivado, a produção científica e tecnológica organizada e o acesso rápido, fácil e barato ao mundo através das telecomunicações, de sistemas de informação e transportes, são os recursos essenciais”. Acrescentava-se a seguir: “Em suma: Um forte empenho da sociedade portuguesa na economia do conhecimento, baseado num crescimento sustentado, na qualidade e na inovação e orientado para aumentos significativos da produção de bens e serviços transaccionáveis”.

Passados vinte e cinco anos, Portugal continua sem um plano de futuro e o presente PRR não é mais do que uma manta de retalhos destinada a consumir 16.000 milhões de euros da União Europeia em objectivos dispersos, frequentemente contraditórios e mesmo ignorantes, como é o caso do hidrogénio e de outras motivações meramente ambientais. O primeiro-ministro bem pode percorrer o país a fazer a propaganda do PRR, mas basta olhar para a ausência de massa crítica conjunta para a mudança para compreender o erro do empreendimento, como seja o de apoiar o turismo que já cresce, porventura demasiado, sem qualquer apoio.

Dos objectivos traçados em 2003 na Carta Magna, o factor humano culto e motivado continua a não ser para este Governo uma prioridade nacional e o sistema educativo vive uma crise profunda, assim como o acesso à Europa através dos transportes, que é agora impedido por um plano ferroviário obsoleto do século XIX, que transforma Portugal numa ilha ferroviária na União Europeia. E isso apesar dos enormes apoios financeiros destinados por Bruxelas para desenvolver a intermutabilidade dos sistemas ferroviários da Europa e não aproveitados por António Costa. Felizmente, de entre as restantes prioridades expressas no documento de estratégia da AIP, graças, em grande parte, à antiga empresa PT, que José Sócrates posteriormente destruiu, os sistemas de telecomunicações e de informação já não constituem um obstáculo ao desenvolvimento do país.

Sobre a prioridade ferroviária discute-se agora se podemos financiar a introdução da ferrovia de bitola UIC (europeia) nas ligações internacionais e um novo aeroporto. Mais uma vez a ausência de uma estratégia é o problema principal, seja porque uma nova ferrovia é uma condição para o futuro económico do país, para mais fortemente financiada por Bruxelas – ver o caso da Espanha –, seja porque um novo aeroporto é necessário principalmente para o poderoso sector do turismo, que paga baixos salários e não garante a continuidade dos fluxos turísticos, que por definição são inconstantes e imprevisíveis.

Neste contexto, a questão estratégica resume-se a saber se a prioridade é a educação e o desenvolvimento de um sector industrial exportador, como a metalomecânica, os componentes de automóvel e o calçado, entre outros, ou se preferimos a roleta constituída pelo sector do turismo. Ou seja, se preferimos ter mais tecnologia, mais exportações e mais trabalhadores especializados, ou mais trabalhadores a fazer a limpeza dos hotéis e mais empregados a servir à mesa de restaurantes, de cafés e de pastelarias. Este seria o problema principal para a anterior secretária de Estado do Turismo e para o Governo de António Costa resolverem. Em ambos os casos faltou a definição de qual o caminho para um Portugal moderno e desenvolvido.

Entretanto, António Costa vai substituindo o progresso social e o desenvolvimento económico do país com viagens de propaganda a defender o PRR. Talvez que essas viagens possam não ser totalmente inúteis se os portugueses e os meios de comunicação se preocuparem em juntar os objectivos dos financiamentos de cada visita numa estratégia coerente, para verificarem sem qualquer grande esforço que se trata de investimentos avulsos, resultantes de iniciativas dispersas, que podendo ser úteis não têm massa crítica para mudar o estado de desenvolvimento do país, pelo menos de forma semelhantes aos países que nos estão a ultrapassar no contexto da União Europeia.

Infelizmente, António Costa prefere tapar a realidade da sua incapacidade para definir uma estratégia para Portugal, tanto como para escolher governantes sérios e competentes no interior da família socialista, acabando a organizar uma ridícula lista de perguntas a serem feitas aos futuros candidatos a governantes, lista que provavelmente chumbaria metade dos actuais governantes. Para um deles, Fernando Medina, bastaria ser conhecida a forma como adquiriu a casa onde habita, ou os diversos rabos de palha que deixou na autarquia de Lisboa, ou ainda porque chegou a mulher a administradora da TAP. Trata-se, como resumiu de forma magistral a jornalista Helena Matos: “Como invariavelmente acontece aos fidalgos, os fidalgos da casa socialista não percebem porque se tornou um escândalo aquilo que para eles era a normalidade”.