O Sol estava prestes a nascer

0
1033

Tomou um duche rápido, pois a água canalizada que havia em casa era a única despesa que ainda conseguia suportar e não podia arriscar um corte da companhia por desmazelo ou um ligeiro descuido que gerasse um qualquer acréscimo no seu consumo… e em casa eram sete.

Electricidade já não tinha há algumas semanas, pois se, por altura da pandemia, as medidas decretadas pelo Governo protegiam os mais desfavorecidos, garantindo-lhes o fornecimento de serviços básicos, há muito tinha acabado a esmola em compensação do triste (des)fecho do seu negócio, já herdado dos pais e que remontava ao tempo dos seus avós.

Não seguir as recomendações das autoridades de saúde e arriscar pesadas multas por infringir as normas de protecção de uma ameaça à saúde pública não era uma opção.

Precisou, em tempos, de trabalhar horas extra para ajudar um dos filhos a pagar uma pesada multa, por ter saído no horário de recolher obrigatório da fábrica onde ainda trabalhava e teria resolvido aliviar as mágoas que o consumiam almoçando da marmita no banco do jardim em frente, para respirar ar fresco, longe da confusão do refeitório das instalações onde passava horas a fio a trabalhar.

Duche tomado, seguiu rumo à estação de comboios para tentar entrar num dos poucos que havia disponíveis para aquele dia, duas horas antes do habitual, pois os constantes atrasos por inexistência de transportes, consequência das greves que duravam há mais de três meses, já lhe tinham custado um ultimato do patrão e entre ir ensanduichado numa carruagem com o triplo da capacidade e ficar sem trabalho na única fábrica que o aceitou, tendo em conta a sua idade, escolheria sempre o primeiro cenário.

Tinha havido na véspera uma rixa que escalou a tal ponto que causara a morte a dois passageiros, deixando quatro gravemente feridos.

Horrorizava-o mais, neste momento, a possibilidade de deixar a mãe, já idosa, sem comida nem medicamentos do que a ideia de ser golpeado com uma facada ou com uma bala perdida. Não tinha esperança nem sonhos.

A esperança e os sonhos eram propriedade do Estado, que os adjudicava por decreto e os concursos há muito haviam fechado.

Por pouco tropeçava num sem abrigo, que há duas semanas dormia na soleira da porta de um prédio já emparedado, que o Estado tinha requisitado por alegado desmazelo dos proprietários. Não tinham respondido atempadamente à comunicação que os obrigava a pronunciar-se ou a dar-lhe uso adequado àquilo que seria o interesse público do momento.

• Leia este artigo na íntegra na edição em papel desta semana já nas bancas •