Regresso a casa

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Ainda bem que chegaste hoje. Já sentia falta de ver a casa desarrumada com as tuas malas, pastas, máquinas fotográficas e bandos de livros a pousarem em todos os cantos; o panamá no bengaleiro, o casaco de linho cor de grão, amarrotado, sempre, a resguardar as costas de uma cadeira e a tua voz grave como um bálsamo de Sarastro a antecipar-me as perguntas e a querer – querer! – saber de mim.

Sempre me fascinou a maneira como contas as aventuras da tua vida – qualquer minudência ganho rasgos homéricos e não há retrato a preto e branco que não narre as cores da Kahlo. Aprecio supinamente o silêncio profundo que guardas para me ouvir nas raras vezes em que tenho alguma coisa para dizer-te e as lamparinas que se acendem nos teus olhos quando falas dos filhos, dos projectos e daquela imensa vontade que tens de voltar a São Petersburgo.

Ainda bem que chegaste hoje. Por entediada, a minha almofada já não me atura, as gatas ignoram-me, Barcelona não está ao virar da esquina e é, no mínimo, presunçoso telefonar aos meus só porque qualquer coisa correu bem.

Tu entendes como ninguém por que vivo entre sonhos e por que as minhas personagens são as grandes arguidas do percalço que tem sido, que é, a minha existência. Agrada-me muito que gostes de ler-me. Às vezes, até incorro na tentação de acreditar que, mais do que por necessidade minha, escrevo apenas para ti, para te levar comigo de passeio pelos meus mundos, para fazer de conta que ando contigo de passeio pelos teus.

No outro dia (eu sei que não ouviste) contei a história de um homem com nome de príncipe. Não, não era a tua história, nem sequer era o teu nome. Mas, mais uma vez e como sempre, escrevi-a para ti, porque tu sabes ouvir por dentro das palavras e conhecer as pessoas por trás das personagens. Mais: tens a sabedoria de querer aprender a amá-las. Por isso és um príncipe, claro. O meu príncipe.

Ainda bem que chegaste hoje e que o teu mundo alvoroçou o meu e que as revoadas dos teus livros e papéis se cutucam assarapantadamente com os enxames com que coabito e que os cinzeiros pedem alforria e que, mesmo noite alta, as janelas da minha casa cantam, alucinadas, os adventos do sol. No pino do Verão, não há clareira como a tua, farol como o teu para eu encontrar o meu caminho de volta a mim.

Mais logo, quando tornar a amanhecer, as chávenas de café no lava-louças, a flor na jarra e os “post-it” no frigorífico vão explicar-me muito bem que não sonhei.

Ainda bem que chegaste hoje. Ou, melhor: Hoje, ainda bem que chegaste.