Dá-me lume…

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Uma das coisas que mais me fascina no mundo da política é a capacidade, quase inata, de autopreservação a qualquer custo. Não pelo vale-tudo que revela o pior de cada um dos intervenientes, antes pela capacidade de antecipação de cenários, de preparação de respostas e contra-ofensivas, pela habilidade das respostas e, sobretudo, pela fertilidade e engenho de cortinas de fumo e manobras de diversão.

Um exemplo do primeiro é a manutenção de Galamba no cargo que ocupa, revelador da sua falta de carácter, de vergonha e honra. Paradigmático do segundo é tudo o que se seguiu à manutenção de Galamba como ministro. Costa apostou as fichas todas num braço-de-ferro com Marcelo, bem sabendo que estava a hipotecar o seu futuro enquanto primeiro-ministro. Antecipando o mais que provável cenário de eleições antecipadas, dá-se a feliz coincidência de, na mesma noite, surgir uma notícia de uma alegada irregularidade no processo de licenciamento da casa de Luís Montenegro que, dias depois, a TVI, de forma abjecta e tendenciosa, explorou até mais não poder. O objectivo claro: dividir o eleitorado de direita que se pudesse sentir tentado a votar, de forma útil, no PSD. Prevendo que a audição de Galamba e, sobretudo, de Frederico Pinheiro, tenha o condão de abanar ou fazer cair o Governo, lá foi tratando de dar mais uns abonos e subsídios aos portugueses, ao mesmo tempo que se faziam parangonas com os resultados macroeconómicos, cada mais dependentes do turismo, mas cujo resultado efectivo se traduz numa dura e real perda do poder de compra das famílias. Bafejado pela sorte do calendário, a aprovação da “Lei da Eutanásia”, que sempre contribui para um aliviar das costas… Por último, uma cortina de fumo, para que a discussão do momento se venha a centrar a jusante: o anúncio, pela mão de Pizarro, de uma aposta clara do Governo numa “Geração sem tabaco”, que tanta tinta fará correr nos próximos meses.

Nesta agenda pessoal de Costa, gerindo temas e “timings” a seu bel-prazer, mas sempre preocupado com o seu futuro político, abstém-se de governar, dando carta branca aos seus irresponsáveis ministros para que estes proponham as mais estapafúrdias medidas que lhes possam ocorrer. Se o fez, com os resultados que se conhecem, nos tempos da “geringonça”, estava acobertado pelo tacticismo político que se impunha e lhe poderia garantir a reeleição. Porém, a demissão de funções governativas, hoje, obedece a um calendário meramente pessoal e tem consequências (muito) mais nefastas para o país. É que, aproveitando o barco à deriva que é este Governo de Costa, e sabendo que ninguém sindica, sequer, a racionalidade, oportunidade, utilidade ou até a legalidade das medidas, escoradas por um Parlamento acéfalo e subserviente, aproveita-se a terra de ninguém para fazer passar diplomas que não representam mais do que visões fundamentalistas de matérias fundamentais.

Manuel Pizarro, médico de formação, antitabagista convicto e ávido de um protagonismo que o possa catapultar para a Câmara da Invicta, lembrou-se de combater ferozmente os fumadores, sem que encontrasse oposição dentro dos seus pares. Não o fez baseado em estudos, pareceres ou opiniões depois de consultar a comunidade médica, científica ou de estar informado sobre o impacto económico das medidas que propôs. Fê-lo porque teve um sonho, uma visão. Ao invés dos pré-adolescentes que têm sonhos húmidos, ou dos mais idosos que, não sabendo com o que sonham, acabam por molhar os lençóis, Pizarro sonha com um Portugal sem fumadores. E, como na maior parte dos sonhos, há um todo onírico sem nexo, uma cronologia que não obedece a regras, um cenário espacial difuso e uma lógica que carece de sentido. Quando acordamos – se por um ou outro motivo não tivermos que mudar os lençóis – apercebemo-nos das estupidezes e incoerências e relegamos o sonho para uma daquelas gavetas recônditas da mente, já que temos que trabalhar e fazer coisas mais importantes. Mas Pizarro é como o bruxo de Fafe: não tem sonhos, tem visões! E às visões cumpre dar uma importância diferente e pô-las em prática com os ritos e empenho que as mesmas carecem.

Pizarro lançou uma cruzada contra os fumadores, considerando-os um perigo para a saúde pública e, não os podendo proibir por decreto, pugnará pela sua exterminação pela míngua. Na mesma senda, fosse Pizarro “vegan” e a carne, o peixe e todos os derivados animais desapareciam das prateleiras dos supermercados e apenas poderiam ser vendidas em lojas situadas a mais de 1,5 km dos centros populacionais e em horários reduzidos, sempre sob termo de responsabilidade e mediante pré-registo para efeitos obscuros num qualquer organismo do Estado. O que se estranha não é esta cegueira direccionada. É que sendo Pizarro ministro da Saúde deste Governo, continue a permitir a venda de produtos açucarados, com sal, pré-embalados e de confecção duvidosa, nos hospitais, nas cantinas escolares e nos refeitórios dos serviços públicos. Ou que não tenha uma palavra de censura no que respeita à proliferação de cadeias de “fast food”, aos anúncios destes produtos em campanhas de televisão ou na imprensa escrita e às promoções direccionadas para a população infantil. Ou que consinta na venda e consumo de produtos alcoólicos em supermercados, cafés, estações de serviço, “vending machines”, ou até nas ditas cantinas e refeitórios. Ou que considere um retrocesso civilizacional a criminalização do consumo de droga na via pública ou em limitar a venda de raspadinhas e outros jogos de sorte e azar. Ou seja, para Pizarro, “O Visionário”, os diabetes, a obesidade mórbida, os problemas coronários, ou a dependência de drogas ou do jogo, constituem perigo muito menor do que o fumo passivo, sem qualquer estudo que sustente a convicção.

E, sem nos determos muito sobre as questões económicas que, em muitos casos representam a sobrevivência de muitos pequenos comerciantes e a profunda desconsideração por todos aqueles que fizeram enormes investimentos para adaptar os cafés e esplanadas às restrições que a lei já veio impor, importa sublinhar o seguinte: qual o saldo eleitoral de Costa se tivesse anunciado na campanha estas medidas? Quantos fumadores e comerciantes teriam deixado de votar nele?

É que, de facto, há matérias tão relevantes e com implicações tão directas e pessoais, que não deveriam ficar sujeitas aos sonhos húmidos de um qualquer ministro. É tempo de aprender a dar um pouco de dignidade a um sistema democrático que se pretende representativo de uma larga maioria da população e, sobretudo, ter a coragem de se anunciar previamente medidas que possam restringir os seus direitos.

Quanto a Pizarro, o ministro, só me apetece dizer: “Dá-me lume…”