O ano de 2017 vai ficar politicamente marcado pela questão da dívida pública portuguesa, que tem subido exponencialmente desde que o executivo do PS, suportado no Parlamento por comunistas e bloquistas, tomou posse há um ano.
Bloco de Esquerda e PCP estão apostados em trazer o tema ao debate político de forma contínua, considerando que a dívida pública tem de ser “renegociada” rapidamente, já que (em seu entender) é impagável e compromete por completo as hipóteses de recuperação económica do país. Já António Costa passou os primeiros meses do seu mandato a garantir que Portugal iria cumprir todas as suas obrigações, enquadrando a questão da dívida num debate europeu. Só mais recentemente densificou o seu pensamento avançando com a ideia de que só depois das eleições na Alemanha é que o tema poderá ser abordado, aproximando-se dessa forma da ala mais à esquerda do actual PS e dos seus parceiros de ‘geringonça’.
Uma coisa é certa: o simples acto político de falar sobre hipóteses de “renegociação” de dívida, num país como o nosso, dependente dos credores num imenso grau, é deitar gasolina para a fogueira, e o risco de nos queimarmos é enorme.
João César das Neves fez recentemente contas aterradoras sobre a dívida pública e a sua trajectória nos últimos anos. Segundo o economista, “desde que o Governo tomou posse, em 26 de Novembro de 2015, a dívida já aumentou 14 mil milhões de euros, mais do que tudo o que o Estado teve de pagar à banca de 2008 a 2014. E isto refere-se apenas ao Estado, omitindo municípios, Segurança Social, etc.”. Em texto de opinião publicado no DN, César das Neves frisa que algumas comparações simples revelam a situação. “Desde que o engenheiro Sócrates chegou ao poder, em Março de 2005, até o Lehman Brothers falir em Setembro de 2008, deflagrando a crise internacional, a nossa dívida directa do Estado aumentou em média 18 milhões de euros por dia, todos os dias, incluindo domingos e feriados. Da falência do Lehman Brothers à chegada da troika, em Abril de 2011, acelerou para 40 milhões por dia. Durante o período da troika, de Maio de 2011 a Junho de 2014, no auge da crise, subiu para 50 milhões por dia. A seguir, e até à chegada de António Costa, a dívida regressou ao ritmo inicial, crescendo 19 milhões por dia. Desde que Costa tomou o poder até ao fim de Setembro, acelerou para 51 milhões por dia. Em Outubro houve uma descida e essa média diária caiu, mas ainda para 42 milhões por dia, a segunda taxa mais elevada dos últimos dez anos”.
Ou seja: com a dívida pública a passar a fasquia dos 130% do PIB, e com os juros da dívida a 10 anos a rondarem a taxa dos 4%, Portugal não vai poder esperar que os credores lhe emprestem mais dinheiro indefinidamente. Na verdade, temos um serviço da dívida de cerca de 8.500 milhões por ano, uma quantia enorme que, para dar uma ordem de grandeza mais facilmente compreensível para o cidadão eleitor e contribuinte, se refere representar um valor semelhante ao que é pago pelo Serviço Nacional de Saúde.
Costa recusa que Portugal abra debate
Falando na televisão pública quando completava um ano de mandato, António Costa quis tentar estancar a pressão do PCP e do BE no sentido de se discutir a dívida pública e a sua “renegociação” em termos mais ou menos radicais. Depois de garantir que a trajectória da dívida vai começar a reduzir, o primeiro-ministro disse que até 2017, ano em que há eleições na Alemanha, nada acontecerá na Europa, razão pela qual só espera que haja discussão sobre a dívida, na União Europeia, depois desse momento.
Ainda assim, António Costa considera que a UE “não pode continuar a ignorar um problema que exige uma resposta integrada”. Para o primeiro-ministro é, porém, “inútil e contraproducente” ser Portugal a abrir esse debate antes de a UE o fazer. “Havendo eleições na Alemanha, até Outubro de 2017 a UE não discutirá nada relativamente às dívidas”, disse o primeiro-ministro. “Mas mais tarde ou mais cedo, infelizmente mais tarde que cedo, isso exige uma resposta integrada. Mas colocar essa questão agora seria inútil e contraproducente”, sublinhou, defendendo, no entanto, que as regras da União Europeia “devem ser ajustadas”, para permitir aos países recuperarem da estagnação, do empobrecimento, e fazerem face ao elevado nível de endividamento. “Mas enquanto não forem mudadas [as regras], nós vamos cumprir”, disse Costa, acrescentando que é assim que tem conseguido manter o diálogo na União Europeia, e tentando mais uma vez serenar os credores.
Também Augusto Santos Silva – o braço-direito de Costa no Executivo – aproveitou o debate do Orçamento de Estado para 2017 afirmar que “o Governo português não apresentará nenhuma proposta de renegociação da dívida portuguesa que implique perdão de dívida, nem avançará unilateralmente para esse debate”.
Santos Silva frisou que é “um problema da Zona Euro, já que praticamente todos os países da Zona Euro, em particular os economicamente mais fortes, estão confrontados hoje com o seu incumprimento do critério de Maastricht, que era 60% da dívida. Nem a Alemanha o cumpre”.
O ministro defendeu que o actual Executivo vai continuar com o uso pleno de “todos os instrumentos de gestão da dívida já hoje disponíveis, como os que o Governo anterior já usou, mas também aqueles de que, por exemplo, o Governo grego beneficia e que Portugal ainda não: devolução ao país dos lucros que o BCE gera com a dívida desse próprio país”.
Recorde-se que, durante o Executivo PSD/CDS-PP, Portugal conseguiu estabelecer outros prazos de pagamento, evitando anos com picos de amortização que com o acordo dos credores foram assim alisados. Por outro lado, aproveitando os juros baixos, Portugal conseguiu ainda negociar pagamentos antecipados ao FMI evitando os empréstimos com taxas mais elevadas, uma vez que se estava a conseguir financiar em mercado em condições mais vantajosas
Já o caso grego é bem diferente do português. Os gregos já tiveram um perdão de dívida e nem por isso conseguiram equilibrar as suas contas públicas, o que levou a uma nova acumulação de dívida. As negociações prosseguiram e conseguiram novas medidas de alívio que Bruxelas acabou por suspender face a um novo incumprimento por parte dos gregos (ver peça em caixa).
Mas os dirigentes do PS desdobram-se em comentários sobre a dívida pública, tanto mais que alguns deles, quando estavam na oposição, alinhavam com o PCP e o BE na tese da “renegociação” urgente. Na verdade, apenas tentam adoptar a linguagem à nova tese de que a questão terá de ter uma solução europeia, evitando posições mais radicais.
O ministro-adjunto, Eduardo Cabrita, defendeu recentemente que Portugal terá mais capacidade para participar no debate europeu sobre a renegociação da dívida se apresentar contas públicas rigorosas e respeitar os compromissos assumidos com a União Europeia.
“Quanto mais nós tivermos afirmado o rigor das nossas contas públicas e a capacidade de, consistentemente, cumprirmos as nossas obrigações num quando europeu, maior capacidade teremos de participar construtiva e activamente nesse debate, que, aliás, vários ministros das Finanças europeus já iniciaram, no quadro das instituições europeias”, declarou numa iniciativa em Setúbal.
Cabrita disse mesmo estar “à vontade nesse tema” porque foi “um dos signatários de um manifesto (a defender a “renegociação”) que reuniu mais de 70 portugueses de várias áreas políticas”.
Ainda no universo socialista, refira-se a ‘nuance’ curiosa do ministro do Trabalho, Vieira da Silva, que depois de António Costa vir dizer que se terá de esperar pelas eleições alemãs para debater o ‘dossier’ da dívida, contestou abertamente a posição do secretário-geral.
Segundo Vieira da Silva, “não se pode ficar eternamente à espera de eleições para resolver problemas”, alertando contudo que se houver “um estremeção nos juros da dívida, dependemos sobretudo mais dos poderes europeus que dos nossos”.
Ministro com peso político muito forte – primeiro no Executivo de José Sócrates e agora com António Costa –, em relação à insistência do PCP e do BE na “reestruturação da dívida”, Vieira da Silva concorda com o diagnóstico, mas frisa que coisa diferente é concordar com as soluções propostas.
A simples referência ao risco de um estremeção nas taxas de juro deve-se ao facto de se notar uma tendência para no prazo a 10 anos estas se situarem muito perto dos 4 %, o tal referencial que deixa a agência de ‘rating’ DBRS desconfortável, uma situação perigosa, pois é a única que coloca Portugal acima de lixo, e permite ao País beneficiar do programa de compra de dívida do BCE. Mas os juros podem efectivamente galopar, o que fará regressar Portugal à crise de 2011, o que seria uma situação dramática.
BE: grupo de trabalho
O Bloco de Esquerda tem defendido que a “renegociação” da dívida deve ser preparada com cuidado, e logo aquando das negociações de apoio ao Executivo do PS deixou no ar a ideia de que a matéria merecia um grupo de trabalho que estudasse todas as implicações para o País.
Por diversas vezes a líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, assumiu que a “renegociação” da dívida pública “é um assunto da máxima importância” para o partido e que vai trabalhar no assunto com grupos de trabalho. “A renegociação da dívida pública é, para o Bloco de Esquerda, um assunto da máxima importância para que o país tenha os recursos que precisa para investir e para criar emprego”
Catarina Martins sublinha a importância de estudar o assunto, defendendo a ideia de que “quando um problema é grande não se deve varrê-lo para debaixo do tapete”, mas antes “é preciso estudá-lo, é preciso conhecê-lo e ter propostas técnicas”.
Para a líder do BE, a “renegociação” da dívida pública é uma prioridade à semelhança do emprego, referindo sobre este último ser preciso “constituir os direitos do trabalho que a ‘troika’ destruiu e que não têm impacto orçamental, mas que têm um impacto tremendo na dignidade de quem vive do seu trabalho em Portugal”.
O grupo de trabalho defendido pelo BE está criado e na dependência do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Pedro Nuno Santos, ele próprio um defensor da “renegociação” quando era deputado do PS durante o Executivo PSD/CDS-PP.
O secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares materializou a iniciativa de criar um grupo de trabalho para “o acompanhamento da evolução da dívida pública e da dívida externa”. O despacho de Pedro Nuno Santos, publicado com efeitos a 12 de Abril deste ano, determina que o grupo de trabalho deverá “apresentar propostas que atinjam os objectivos mencionados (…) em Setembro de cada ano, sem prejuízo da sua manutenção até ao final da presente legislatura”.
PCP aborda saída do Euro
No domínio da dívida e da Moeda Única o PCP apresenta uma postura bastante mais radical. Ainda no último Congresso – realizado no início deste mês de Dezembro – Carlos Carvalhas advogou a saída de Portugal do Euro.
O ex-secretário-geral do PCP prevê “saídas inesperadas” da Zona Euro, e pede que Portugal se prepare para essa eventualidade. A começar pela passagem dos contratos de dívida externa para moeda nacional.
Carlos Carvalhas advertiu que é preciso “encarar de frente” a dívida e os “desequilíbrios do euro”, e antecipou que uma “nova explosão” da crise financeira pode ditar saídas inesperadas da moeda única.
O economista e dirigente comunista defendeu uma preparação para a saída de Portugal da moeda única que deve começar “desde logo pela passagem para o Direito português dos diversos contratos da dívida externa para que a dívida seja depois paga em moeda nacional e não em euros”.
Mas parece totalmente impossível que os credores de Portugal venham a aceitar essa mudança que implicaria receberem no futuro numa moeda nacional (um novo escudo) em vez de em euros. Ou seja, levaria a fortes perdas na hora de receberem o dinheiro que emprestaram.
O euro tem sido “factor da perda de competitividade e desequilíbrio externo”, disse Carvalhas, apontando ainda que a moeda única tem sido “um travão a maior expansão nas exportações” e questionando “quantos mais anos serão necessários para se tirarem as devidas conclusões?”.
Eleito para um novo mandato de quatro anos, Jerónimo de Sousa centrou o seu discurso de encerramento igualmente na necessidade de “renegociar” a dívida portuguesa e libertar-se da “teia” do Euro para poder crescer economicamente.
O líder do PCP voltou a falar na dívida pública e criticou as ameaças e chantagens da Europa, que considera “inaceitáveis”. Um motivo para trazer ao debate político a saída do Euro, reforçou novamente o líder comunista.
“É inaceitável que nos queiram atirar, enquanto povo e nação, para o gueto do empobrecimento, dependência e negação dos direitos de Portugal ao seu desenvolvimento soberano. Inaceitável que todos os anos sejam retirados mais de oito mil milhões de euros aos recursos públicos só para pagamento de juros da dívida para manter o privilégio e, no final de cada ano, a dívida se encontrar exactamente na mesma”, criticou o líder do PCP.
Os comunistas defendem, assim, “uma acção decisiva no sentido da renegociação da dívida para que seja possível reduzir significativamente os juros pagos anualmente” e assim “libertar recursos de que Portugal tanto precisa para o seu desenvolvimento económico e social”.