Um brado de repulsa e indignação percorre o País. Incredulidade, perplexidade e revolta dominam as conversas, as redes sociais, os comentários na imprensa, os bastidores da política. Como foi possível um juiz de instrução reduzir a cinzas um processo do Ministério Público com 189 acusações de crimes graves, validando apenas 17 e mandando 23 dos acusados em paz? Ao fim de mais de um ano de instrução, o Processo Marquês, em que vinham acusadas figuras gradas da política, da finança e dos negócios, conclui recomendando o julgamento de apenas cinco arguidos: José Sócrates, por três crimes de branqueamento de capitais e três crimes de falsificação de documentos (eram 31 crimes na acusação original), Carlos Santos Silva por igual imputação, Ricardo Salgado por três crimes de abuso de confiança, Armando Vara por um crime de branqueamento de capitais e o motorista João Perna por um crime de detenção de arma proibida. As restantes 172 acusações do Ministério Público, resultado de sete anos de investigação, ficaram no cesto dos papéis do Tribunal Central de Instrução Criminal, a maior parte das quais por terem alegadamente prescrito.
O nome do juiz instrutor Ivo Nelson de Caires Batista Rosa andou toda esta semana de boca em boca – e uma petição pública já assinada por 200 mil pessoas, embora de duvidosa eficácia, reflecte o grau de indignação causado pelo seu despacho e reclama o seu afastamento do Juízo de Instrução. “Não tem perfil, rigor e equidade para exercer tal cargo”, sublinham os signatários, recordando que o polémico juiz tem no cadastro um longo historial de desentendimentos com o Ministério Público e os Tribunais superiores, que com frequência anulam os seus despachos.
Será esse, porventura, o destino da sua decisão instrutória no Processo Marquês, ainda que algumas das prescrições resultem da força de leis em vigor que importa alterar (ler caixas, nestas páginas). Espera-se, pois, que o recurso do Ministério Público para o Tribunal da Relação acabe por revalidar muitas das provas carreadas para o processo pelos investigadores.
José Sócrates Pinto de Sousa arrogante no seu papel de “vítima” que saiu na passada sexta-feira do Campus da Justiça, em Lisboa, debaixo de uma trovoada de protestos e insultos de populares (o mesmo sucedendo na última quarta-feira, quando foi à TVI repetir com insolência a sua versão). “Sinto-me com a tranquilidade dos inocentes e quero uma reparação por tudo”, disse o antigo chefe do PS, que na televisão criticou a falta de solidariedade do seu antigo protegido, António Costa (“uma profunda canalhice”, nas suas palavras).
O PS foi, na verdade, o único partido que não tomou uma posição oficial de crítica a José Sócrates. O único dirigente socialista a pronunciar-se sobre o despacho final de Ivo Rosa foi o insosso Fernando Medina, autarca de Lisboa, que toda a gente identifica como factótum de Costa. As suspeitas de recebimentos avultados sem explicações rompem “laços de confiança” e corroem “a nossa vida democrática” – disse Medina.
O silêncio socialista contrastou com o clamor que de todos os quadrantes se fez ouvir pela extrema leveza da decisão instrutória de Rosa face à gravidade dos crimes provados. “Não pareceu um juiz de instrução, mais parecia o advogado de defesa de José Sócrates” (Paulo Morais). “Foi um tiro na cabeça da Justiça e da credibilidade da democracia em Portugal” (Nuno Melo). “Não foi um erro da Justiça, foi um insulto ao país” (José Manuel Fernandes). O conselheiro de Estado Luís Marques Mendes foi ainda mais directo: “Este juiz é um perigo à solta!”.
E até a Procuradora-Geral da República, habitualmente tão comedida, admitiu compreender “alguma perplexidade já manifestada por alguns sectores da nossa sociedade”. “Compreendo que a situação é susceptível de causar algum desconforto”, acrescentou, recordando que a decisão instrutória “não é definitiva” e que o Ministério Público já anunciou que vai interpor recurso. ■