DUARTE BRANQUINHO
As sociedades de advogados são uma peça essencial no mecanismo de aparente captura do poder político e pelo poder económico e financeiro?
Esta é a pergunta a que o jornalista Gustavo Sampaio responde no seu novo livro chamado “Os Facilitadores” e recém-publicado pela Esfera dos Livros. Um trabalho revelador, onde, depois de uma exaustiva e rigorosa investigação, o autor nos mostra como a política e os negócios se entrecruzam na sociedades de advogados. O DIABO entrevistou-o.
O DIABO – Muito se fala na promiscuidade entre a política e os negócios, mas são necessários “facilitadores”. O que o levou a esta investigação sobre o papel das principais sociedades de advogados?
Gustavo Sampaio – De facto, muito se tem falado nessa “promiscuidade”, ao ponto de o conceito em si já não ter um significado concreto. Foi banalizado ou, pior, instrumentalizado no âmbito de agendas político-partidárias.
É a pior forma, na minha opinião, de discutir seriamente em torno destas questões, seguindo linhas político-partidárias, no contexto de campanhas eleitorais. Porque o fenómeno das interligações entre o poder político e os interesses empresariais, a captura do poder político pelo poder económico e financeiro, a submissão do interesse público, trata-se de um problema de regime, transversal aos três partidos do arco da governação, como atestam os dados que recolhi tanto para “Os Privilegiados” como para “Os Facilitadores”.
Nesse mecanismo de captura do poder político, os agentes “facilitadores” desempenham um papel fundamental, com epicentro nas principais sociedades de advogados que operam em Portugal.
Daí a motivação para escrever este novo livro, analisar a peça que faltava para perceber melhor como funciona esta espécie de “complexo jurídico-empresarial” que canaliza os recursos públicos do Estado para os grupos empresariais ávidos de monopólios e rendas.
Como diz no Prólogo, a falta de informação é uma das principais fontes de propagação das teorias da conspiração. O livro tem como objectivo informar para que o leitor tire conclusões fundamentadas?
Exactamente. Caberá ao leitor interpretar o conteúdo do livro e chegar a eventuais conclusões. Não quero condicionar a leitura, até porque são questões complexas que poderão resultar em diferentes perspectivas. Julgo que o papel do jornalista é essencialmente informar, e não opinar.
Como funciona o complexo jurídico-empresarial de que falou e qual a posição do poder político?
A questão central que deve acompanhar a leitura do livro consiste na localização da decisão política. Isto é, se uma decisão política é tomada legitimamente pelo poder político e só depois é que surgem em cena os agentes “facilitadores”, assessorando, intermediando, em suma prestando o serviço para o qual foram contratados pelo Estado, por mais que lucrem com isso, não poderá ser apontada nenhuma ilegalidade.
Mesmo que se discorde da decisão política, em princípio trata-se de uma decisão legítima. Contudo, há casos em que os agentes “facilitadores” parecem intervir no próprio processo de decisão política, o que já levanta uma série de dúvidas. Mais grave, há indícios de que em determinadas situações a decisão política é tomada em consequência da acção desses agentes “facilitadores”, ou seja, a decisão política situa-se a jusante e nesse caso há dúvidas quanto à sua legitimidade e até legalidade.
O principal objectivo desses “facilitadores” é a internacionalização económica?
A internacionalização é uma das novas prioridades, sobretudo desde que a crise económica e financeira atingiu Portugal mais profundamente, com grande impacto por exemplo nos sectores da construção civil, obras públicas, imobiliário, etc.
É uma solução de recurso. Mas esse objectivo deve ser atribuído aos grupos empresariais, não aos intermediários, sociedades de advogados, que apenas aproveitam as oportunidades de negócio. Os “facilitadores” são sobretudo um instrumento, não são eles que definem os objectivos, na minha perspectiva.
Mas intervêm em casos que têm provocado indignação pública, como as privatizações ou as PPP…
Sim, nesses processos desempenham um papel essencial. Como está demonstrado no livro, as sociedades de advogados intervieram activamente em todas as privatizações, parcerias público-privadas, concessões e subconcessões, etc., ora do lado do Estado, ora do lado do sector privado.
E a grande questão que se levanta passa pela constatação de conflitos de interesses sistemáticos. O livro descreve dezenas de situações em que as sociedades de advogados assessoraram o Estado, defendendo o interesse público, perante empresas que são suas clientes. Muitas vezes com a agravante de sócios dessas firmas de advogados ocuparem cargos nos órgãos sociais dessas mesmas empresas.
Também há casos em que uma determinada sociedade de advogados representou uma empresa privada no estabelecimento de uma PPP e posteriormente foi contratada pelo Estado para renegociar o contrato dessa PPP, não raras vezes blindado, com a mesma empresa privada.
Ou seja, tanto participam na blindagem como na posterior desblindagem dos contratos. Tudo isto levanta muitas dúvidas quanto à efectiva defesa do interesse público em todos estes processos. Os conflitos de interesses são sistemáticos e as interligações com o poder político, através de advogados que são políticos ou ex-políticos, configuram uma densa rede de interesses cruzados, conflituantes, verdadeiramente preocupante.
As situações em que advogados, especialmente dessas grandes sociedades, acumulam o exercício dessa profissão com um mandato de deputado são muito duvidosas. Como é possível garantir a transparência?
O problema não são apenas os deputados-advogados, mas também os ex-políticos, ex-governantes, que transitaram para as principais sociedades de advogados. Ou actuais dirigentes partidários. Ou membros dos gabinetes ministeriais. Ou ex-reguladores.
Entre outros agentes “facilitadores”, híbridos por natureza. O fenómeno da participação no processo legislativo não se concretiza apenas através de deputados-advogados. Muitas vezes é o próprio Estado que contrata essas firmas de advocacia para participarem em processos de produção legislativa.
Muitos advogados dessas firmas integraram comissões de produção legislativa, ou de reformas do sistema fiscal, entre outras situações. E depois, evidentemente, vendem os seus serviços aos clientes, conhecendo melhor do que ninguém as leis que ajudaram a conceber, as lacunas, as vírgulas que desaparecem misteriosamente.
Esta espécie de ‘outsourcing’ legislativo inquina o sistema e descredibiliza as instituições democráticas. Por exemplo, a Sérvulo & Associados concebeu o Código dos Contratos Públicos e tornou-se na firma que mais lucra através de contratos por ajuste directo de entidades públicas, na ordem dos 10 milhões de euros nos últimos anos.
No livro analisa oito sociedades de advogados. São um mundo à parte das pequenas sociedades ou dos advogados individuais?
São oito capítulos correspondentes às oito maiores sociedades, mas dentro dos capítulos também há referências a outras sociedades de dimensão média. Não diria que são um mundo à parte, pois também há pequenas ou médias sociedades de advogados que também apresentam indícios de conflitos de interesses e contratam ex-políticos para os respectivos quadros. Mas as principais firmas são as que têm mais interligações com o poder político e com os interesses empresariais.
Mais, são as firmas contratadas para todas as privatizações, PPP, concessões e subconcessões, contratos ‘swap’, etc. E quanto a advogados individuais também há o caso, por exemplo, de Guilherme Silva, deputado do PSD em funções que é recorrentemente contratado como advogado pelo Governo Regional da Madeira.
Refere também a Tecnoforma, que agora voltou à ordem do dia…
Recordo a ligação de Luís Marques Mendes, actual consultor da Abreu Advogados, à fundação da ONG da Tecnoforma. E saliento os percursos de outros elementos, além de Passos Coelho, ligados à Tecnoforma, como Miguel Relvas, Paulo Pereira Coelho ou Francisco Nogueira Leite.
Tudo isto no contexto da relação entre Marques Mendes e Passos Coelho, que parece consubstanciar o comentário político de Marques Mendes na televisão, muitas vezes com informação privilegiada que parece ter origem no Conselho de Ministros. Isto ao mesmo tempo que Marques Mendes trabalha na Abreu Advogados, relacionando-se com clientes que terão muito interesse, potencialmente, em aceder a essa informação em primeira mão.
Quais foram as maiores dificuldades que encontrou nesta investigação?
O sigilo inerente a diversos contratos, nomeadamente nas situações em que o Estado contratou os serviços de determinadas sociedades de advogados no âmbito dos processos de renegociação dos contratos “swap” com instituições bancárias. Nem as entidades públicas nem as sociedades de advogados revelaram quais foram as instituições bancárias envolvidas nesses processos.
Sendo que a maior parte das instituições bancárias que firmaram contratos “swap” com entidades públicas são clientes dessas mesmas sociedades de advogados. Mais, determinados sócios dessas firmas ocupam cargos nos órgãos sociais dessas mesmas instituições bancárias. Também deparei com dificuldades em encontrar registos de contratos públicos no portal Base. Há muitos contratos que pura e simplesmente não estão registados no portal Base, ao contrário do que se proclama.