Portugal a ver passar comboios

A ferrovia portuguesa é incompatível com a do resto da Europa. As consequências de não ser actualizada vão prejudicar o país por décadas. Há fundos europeus que desaparecem em 2030. O desleixo ou desinteresse do Governo é inexplicável

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A União Europeia avisou Portugal e a Espanha de que os dois países têm até 2030, ou seja, dentro de sete anos, para realizarem na península a tão desejável interoperabilidade ferroviária, para o que têm à disposição apoios que podem chegar a 70% dos custos. Como habitualmente, quando se trata de questões em que António Costa não tem uma resposta responsável, o PS e o Governo silenciaram o assunto como se não existisse.

Entretanto, não se compreende que esta directiva europeia implique uma crítica conjunta a Portugal e a Espanha, porquanto a Espanha já leva trinta anos de investimento no que é hoje a mais moderna ferrovia europeia interoperável em bitola UIC, tendo sido Portugal que não construiu um único quilómetro de ferrovia nesta bitola, fazendo do país uma ilha ferroviária. Talvez que a crítica conjunta seja destinada a criticar o muito pouco feito pela Espanha no corredor Atlântico, entre Madrid e a fronteira portuguesa, mas a posição da Espanha compreende-se, porque tendo o acordo com Portugal, realizado na Figueira da Foz, no tempo do Governo de Durão Barroso, não ter sido cumprido por Portugal e nada ter sido feito durante muitos anos para o seu cumprimento, a Espanha tenha preferido investir na ligação a França e unir as regiões mais industrializadas e de maior capacidade exportadora da Espanha a toda a Europa.

Assim, neste momento, a Espanha já tem comboios em bitola UIC, de passageiros e de mercadorias, de passageiros a operar a mais de 300 quilómetros por hora de Madrid a Barcelona e daí para França e a toda a Europa e dentro de dois a três anos terá terminada a difícil ligação a França através dos Pirenéus, desde a cidade de Vitória. Além disso, a Espanha usou o dinheiro de Bruxelas destinado ao corredor Atlântico para ligar Madrid à Galiza, o que levou António Costa, numa visita ao Norte de Portugal, a fazer a inacreditável afirmação de que as empresas e os habitantes de Trás-os-Montes já tinham a ferrovia a passar junto de casa, podendo usar essa ligação à Espanha e à Europa. Não esquecendo que a Espanha tem, desde há cerca de trinta anos, uma linha de alta velocidade para passageiros entre Madrid e Sevilha.

Mas não só, enquanto Portugal permaneceu parado no tempo, a Espanha desenvolveu uma indústria ferroviária capaz de produzir os mais modernos comboios de alta velocidade que hoje exporta, nomeadamente para a América do Sul, enquanto Portugal se contenta em comprar os comboios velhos de bitola ibérica, de que a Espanha já não precisa, verdadeiro lixo ferroviário que não serve para qualquer outro país.

Presentemente, a Espanha, com notável realismo económico, tem em construção, além da ligação do País Basco a França, o corredor do Mediterrâneo que ligará Barcelona e Valência ao porto de Algeciras, que é o porto mais directamente concorrente do nosso porto de Sines, enquanto este espera há muitos anos pela ferrovia e tem agora a promessa de uma ligação ao Poceirão e a Espanha, imagine-se, em bitola ibérica. Claro que esta promessa do ministro vale muito pouco, recordando a outra promessa dos governos de José Sócrates, que chegou a comprar o projecto da ligação do Poceirão a Badajoz em via dupla e bitola UIC, também com ligação a Sines, projecto que o actual Governo meteu na gaveta, depois do Governo de Passos Coelho já o ter feito. Em substituição, o actual Governo tem em construção a ligação do Poceirão ao Caia, passando por Évora e ao largo de Beja e, acredite-se ou não, em via única e em bitola ibérica.

A promessa tola do ministro Pedro Nuno Santos é a de que esta linha está preparada para futuramente se fazer a mudança para a bitola UIC, ou seja, uma estupidez semelhante à do antigo ministro do PSD Joaquim Ferreira do Amaral que decidiu, contra a vontade de um seu antecessor, fazer a chamada modernização da linha entre Lisboa e o Porto, onde já foram consumidos mais de dois mil milhões de euros sem nenhuma vantagem palpável. Estas almas não descobriram ainda que tecnologias com mais de cem anos de vida não têm modernização possível e que fazer alterações de linhas em pleno funcionamento e a trabalhar de noite custa fortunas e nunca mais ficam prontas, servindo apenas as empresas de construção que facturam sem qualquer controlo. Veja-se ainda que o Governo PS já anunciou a construção de uma nova linha de Lisboa ao Porto, mas ainda em bitola ibérica, que, suponho, a União Europeia nunca cometerá a estupidez de aprovar e financiar. De qualquer forma, trata-se apenas de outra promessa.

Confesso que é muito difícil de compreender a insanidade do Governo de António Costa na manutenção da bitola ibérica em novas linhas, argumentando que não temos dinheiro para mudar a bitola de toda a ferrovia portuguesa. Ora ninguém no seu juízo pretende mudar a bitola em toda a ferrovia, mas apenas, como fez a Espanha, compatibilizar os dois sistemas, como proposto pela própria União Europeia, através do corredor Atlântico, que era suposto entrar em Portugal a partir de Salamanca até Aveiro, deste porto a Lisboa e ao Poceirão e daí reentrar em Espanha por Badajoz e com uma ligação a Sines. Ou seja, para já bastará construir uma primeira ligação a Espanha, na minha opinião de Aveiro à fronteira espanhola, sendo que a segunda possibilidade, escolhida pelo Governo de José Sócrates, a ligação pelo Sul, é igualmente possível. Sendo que uma nova linha de Lisboa ao Porto em bitola UIC fecharia o circuito, sem prejuízo de serem previstas, como feito em Espanha, ligações pontuais entre os dois sistemas, possíveis para pequenas distâncias.

O ministro Pedro Nuno Santos tem afirmado inúmeras vezes que a bitola não é um problema, sem nunca explicar como é que isso se faz, nomeadamente na ligação à nova rede espanhola de bitola UIC. Existe de facto um sistema espanhol de eixos variáveis, mas que nunca foi pensado para grandes distâncias por duas razões: (1) porque limita a velocidade e os pesos a transportar; (2) porque nenhum operador europeu irá adoptar um sistema especial de transporte ferroviário, fatalmente mais caro, apenas para servir um pequeno mercado no extremo da Europa. Aliás, o mesmo princípio é aplicável ao nosso próprio mercado, porque o fabrico futuro de material ferroviário especial em bitola ibérica será sempre muito mais caro e com longos prazos de entrega, o que já está a apoquentar o ministro. Por enquanto, a compra de material obsoleto em Espanha vai resolvendo o problema.

Em resumo, na questão ferroviária, como em quase tudo o resto, desde o serviço Nacional de Saúde à Educação, da TAP ao famoso hidrogénio, da trasfega do gás russo na zona económica exclusiva de Portugal ao crescimento económico em geral, o Governo de António Costa não sabe o que faz. Ter este primeiro-ministro mais quatro anos só pode apavorar os empresários portugueses e afugentar os estrangeiros. ■