Tolerância zero para privados, feriado para a Função Pública

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EVA CABRAL

A vinda do Papa a Portugal vai dar mais uma tolerância de ponto aos funcionários públicos, aumentando ainda mais o favorecimento destes face aos que trabalham no sector privado.

O primeiro-ministro considerou que seria uma “grande insensibilidade” se o Governo não concedesse tolerância de ponto a 12 de Maio (uma sexta-feira), quando o Papa Francisco chega a Portugal para celebrar o centenário das “Aparições de Fátima”.

De forma clara ficámos a saber que os trabalhadores do sector privado ficam confrontados com a “grande insensibilidade” de terem de trabalhar, apesar de serem igualmente devotos e crentes nas aparições. Mas António Costa não resiste a querer “estar bem com Deus e com o diabo”.

O primeiro-ministro adianta que “é natural que muitos portugueses desejem participar na visita do papa Francisco a Portugal, um momento que distingue o País. Por isso, também é natural que o Governo dê tolerância de ponto para facilitar quem deseja participar nas cerimónias o possa fazer e diminuam as condições de congestionamento” (o Português é dele). E acrescentou que, “pelo contrário, seria estranho se o Governo não tomasse essa decisão”.

Para o PM, não existe sequer a questão da desigualdade de tratamento entre público e privado. Com o seu irritante e tradicional optimismo, diz: “Tenho um grande à-vontade sobre esta matéria, porque não só defendo a laicidade, como não sou crente, mas respeito a crença dos outros e não ignoro que muitos portugueses perfilham a fé católica e que muitos portugueses desejarão estar em Fátima. Acho que seria uma grande insensibilidade da parte do Governo não o fazer, como temos feito em outras ocasiões”. Pena é que não entenda que quer na Função Pública como no sector privado existe quem seja católico, quem professe outro credo ou quem não seja nada.

Também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, considerou “sensato manter a tradição” de dar tolerância de ponto aos serviços públicos nas visitas papais e lembrou que todos os Governos no passado tomaram idêntica decisão, que nunca foi consensual.

Em declarações aos jornalistas, em Coimbra, o Presidente da República recordou que o Governo que integrou, em 1982, aquando da primeira visita de João Paulo I, “não agradou” a toda a gente quando decidiu dar tolerância de ponto.

“Não agradou quando voltou o Papa João Paulo II, não teve de ser consensual quando veio o papa Bento XVI [em 2010] e agora também não é consensual. O problema é saber se é sensato ou não é sensato manter a tradição. Eu acho que é sensato”, argumentou.

Críticas no PS

Mal se soube da tolerância de ponto para a Função Pública na visita do Papa, a medida começou a dividir deputados do PS – uns contra, como Ascenso Simões, outros a favor, como João Soares.

O deputado Ascenso Simões afirmou que a tolerância “não faz qualquer sentido”, dado que no dia 12 de Maio, sexta-feira, “só há procissão das velas à noite e as comemorações são a um sábado”.

“Abençoada tolerância para um Papa tolerante”, foi a resposta, curta, do deputado socialista João Soares, nascido numa família laica. A mãe só se converteu ao catolicismo após o acidente aéreo de João Soares.

A polémica também tem estado acesa nas redes sociais. Na sua conta do Facebook, Porfírio Silva, deputado e membro da Comissão Permanente da direcção de António Costa, desdramatizou os planos do executivo de conceder tolerância de ponto, afirmando tratar-se de “uma medida prática e que tem em conta a realidade concreta do que vai acontecer na ocasião”.

“Cansa um excesso de vigilância ideológica sobre tudo e mais alguma coisa, como se fosse precisa tanta rigidez (a criticar a tolerância de ponto) para continuarmos a ser socialistas, republicanos e laicos”, acrescentou o deputado socialista.

Posição radicalmente distinta tem Isabel Moreira, eleita como independente nas listas do PS. Esta escreve no Facebook: “É perante decisões como a do Governo de conceder tolerância de ponto aquando da ida do papa a Fátima que sabemos da imaturidade do Regime. Muito por que lutar”.

Curiosamente, PCP e BE resolveram retirar-se desta polémica e estão a passar os dias a assobiar para o lado. Trata-se de um exemplo de pragmatismo de quem já está abancado na gamela do poder e sabe que as eleições autárquicas estão ao virar da esquina.

Associação Ateísta Portuguesa

Já a Associação Ateísta Portuguesa considera que a decisão do Governo de conceder tolerância de ponto aos funcionários públicos é “um descarado ataque à laicidade” do Estado. Essa medida “é uma atitude indigna de submissão perante a Igreja Católica”, disse o presidente da AAP, Carlos Esperança.

O dirigente ateísta rejeitou ainda “a caução que, de certo modo, está a ser feita pelas entidades públicas a uma encenação que começou por ser contra a República”, numa alusão ao fenómeno registado em Fátima, concelho de Ourém, entre Maio e Outubro de 1917, e que a Igreja veio a classificar como aparições da Virgem Maria a três crianças – Lúcia, Jacinta e Francisco – que apascentavam ovelhas. Em 1930, as alegadas aparições “passaram a ser contra o comunismo e, depois da implosão da União Soviética, contra o ateísmo”, salientou Carlos Esperança. “Esta encenação pia tem tido a colaboração de autarquias que sofrem ataques de fé e proselitismo em anos eleitorais”, criticou.

Para o presidente da AAP, a concessão de tolerância de ponto nos serviços públicos a 12 de Maio, dia em que o papa Francisco chega a Portugal para o centenário das chamadas aparições de Fátima, põe em causa “a letra e o espírito da Constituição da República” e constitui “uma traição à separação entre as igrejas e o Estado”.

Carlos Esperança criticou ainda os autarcas que organizam excursões a Fátima, sobretudo com idosos e em ano de eleições locais, “com transportes e vitualhas” pagos por Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia, “só com a bênção a cargo das autoridades eclesiásticas”.

Recorde-se que o Papa Francisco visita Fátima a 12 e 13 de Maio para canonizar dois dos pastorinhos, Jacinta e Francisco, no centenário das “aparições na Cova da Iria”, em 1917. Francisco tem também encontros agendados com o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e com o primeiro-ministro, António Costa.

Francisco será o quarto Papa a visitar Fátima, depois de Paulo VI (1967), João Paulo II (1982, 1991, 2000) e Bento XVI (2010).