Uma auditoria do Tribunal de Contas da União europeia arrasa alguns países que gostam de acusar mas que, no momento da verdade, são tão culpados como os outros do mau uso dado aos dinheiros de Bruxelas.
Foi revelado que mais de 5% do orçamento da União Europeia são desperdiçados em gastos que, no mínimo, são impróprios. Ou seja, nunca deviam ter sido feitos.
Quem o revela é o próprio Tribunal de Contas da União Europeia, segundo o qual estes 5% já incluem o reembolso que os vários Estados-membros conseguiram obter: sem este factor, a taxa de erro total seria de 6,3%. Dada a dificuldade na obtenção dos reembolsos, o facto é que quem recebeu dinheiro de forma irregular fica, geralmente, a rir-se.
Mas nota-se um pequeno esforço para proteger, ainda que minimamente, o complexo de Babel que actualmente se chama União Europeia, pelo mesmo organismo responsável pela auditoria.
Ora, dizem os eurocratas, não estamos perante uma situação de “fraude”, pois fraude é, de acordo com os seus próprios termos, “um acto lesivo deliberado para obter um benefício”, e neste caso estaremos perante casos de “montantes que não deveriam ter sido pagos porque não foram utilizados em conformidade com a legislação aplicável”.
Ou seja: um agricultor da Sardenha que recebeu fundos europeus para não usar um químico nocivo para o ambiente mas que, afinal, usou esse químico pelo menos 12 vezes, não praticou uma fraude, apenas uma “irregularidade”…
Do ponto de vista estritamente formal, é possível que o Tribunal de Contas não esteja errado: segundo aquele órgão comunitário, a culpa pode não estar em quem faz o pedido, mas sim em quem está disposto a aceitá-lo sem quase olhar para ele.
Gasta! Gasta! Gasta!
Há anos que a história do agricultor que, em vez de um tractor, comprou um Range Rover com fundos europeus circula nas conversas de café dos portugueses. Tal como em todas as histórias, existe um pouco de verdade, de mentira e de preconceito à mistura, mas o facto é que esta auditoria revela que a forma como o sistema está montado significa que a história, no mínimo, é inteiramente plausível.
E a culpa reside, em grande parte, nos Estados-membros. A auditoria revela que as autoridades de cada Estado dispunham de informação suficiente para resolverem rapidamente os casos de irregularidade, sem ser necessária intervenção dos órgãos da União. E Portugal não é citado como um dos piores casos, embora o país que diz que somos mal organizados, a Alemanha, seja citada como um fracasso neste campo, bem como a Irlanda, França e Itália. Porventura, até fomos “honestos demais”, tendo em conta a possibilidade de países mais ricos do que o nosso estarem a ser favorecidos com dinheiros saídos do nosso orçamento.
A auditoria critica o ambiente esbanjador que rodeia o sistema de atribuição de fundos, que denomina como “gastar ou perder”. Ou seja, cada Estado está mais concentrado em absorver o máximo de fundos europeus, prontificando-se a ajudar o cidadão a cumprir as regras necessárias para que as propostas sejam aceites pela burocracia bizantina de Bruxelas.
Segundo a auditoria, quase metade das ditas “irregularidades” encontra-se no sector da “política regional, transportes e energia”, ou dito por miúdos, no segmento da infra-estrutura e obras públicas: 6,9% de todo o dinheiro gasto neste segmento seguiram a norma regulamentar. Segue-se o sector do “desenvolvimento rural, ambiente, pescas e saúde”, onde 6,7% das verbas foram mal gastos – ainda assim uma melhoria, visto que a taxa de erro já chegou a atingir os 7,9% em 2012.
Orgia keynesiana
Mas, neste ambiente de orgia keynesiana, ninguém parece estar muito preocupado com os benefícios destes investimentos. Talvez seja por causa disso que António Costa tanto quer investimento europeu: gastar dinheiro sem resultados tangíveis é quase uma plataforma do partido que lidera.
“Falta de ênfase no desempenho constitui uma deficiência fundamental na concepção de grande parte do orçamento da UE”, dizem os auditores. Nada que não fosse esperado de uma organização que até há relativamente pouco tempo pagava aos agricultores e pescadores europeus para não produzirem, de forma a serem cumpridas as “quotas de mercado” inventadas por Bruxelas.
O objectivo é gastar, o mais rapidamente possível, sem olhar a resultados. Não é de admirar que haja erros numa organização que funciona com esta mentalidade.
Afirmam os auditores que a fonte de maior erro é a “inclusão de custos inelegíveis nas declarações de despesas”, ou seja, despesas com gasolina de carros privados, pagamentos de tarifas de telemóveis, Range Rovers em vez de tractores, entre outros desvios.
A este segmento seguem-se “projectos, actividades ou beneficiários inelegíveis” e ainda algo que todos suspeitávamos que acontecia: “erros graves na adjudicação de contratos públicos”. Mas desengane-se o leitor se pensa que este é um fenómeno exclusivamente português: um dos casos de “infâmia” que é apresentado pelos auditores vem da terra dos defensores da “moralidade e austeridade”, a implacável Alemanha.
O caso é simples: na terra da senhora Merkel estava a ser construído um terminal de passageiros num aeroporto, mas a execução do projecto correu mal e precisou de obras complementares. O problema reside no facto de que estas obras alemãs, que foram feitas com financiamento de todos os europeus, foram adjudicadas sem concurso, de forma directa. Se fosse em Portugal já se gritava “compadrio!” e “corrupção!”, mas na terra dos diligentes engenheiros, pelos vistos, não passa tudo de “irregularidade”.
Mais abusos
Outro exemplo mostra bem como comportamentos que consideramos como “tipicamente portugueses” são, afinal, correntes noutros países, que apenas sabem esconder melhor os seus pecados e não alimentam o vício da auto-depreciação. Na Eslovénia foi criada uma pequena/média empresa (PME) com base em fundos europeus.
O objectivo desta empresa era promover a investigação e o desenvolvimento na área da indústria automóvel. E, no entanto, veio-se a descobrir que a empresa era propriedade de grandes grupos económicos e que trabalhava em regime de exclusividade para estes.
Noutro caso, os nossos vizinhos espanhóis decidiram comprar quatro helicópteros com a finalidade de patrulhar as fronteiras externas da Europa, de forma a combater a imigração ilegal.
Enviaram a factura para a UE, que só mais tarde descobriu-se que os helicópteros apenas estão a ser usados para o propósito oficial durante 25% do seu tempo de utilização. Entretanto, a nossa Força Aérea, com um orçamento cada vez mais reduzido, tem de continuar a dar uso aos velhinhos Alouette, helicópteros que já vêm do tempo da guerra no Ultramar.
Mas, no fim, há que referenciar um ponto positivo: a taxa de erro na receita é de 0%, o que significa que, pelo menos, no momento de “sacar” dinheiro aos Estados, que por sua vez o “sacam” aos contribuintes, a União Europeia funciona perfeitamente. Só a gastar é que já não exibe tantos escrúpulos…
É capaz de ser por estas razões que o Reino Unido, e agora também a Holanda, estão a recusar pagar um aumento nas suas contribuições. A Alemanha protesta, até ameaça expulsar estes países da EU (algo que não pode, na verdade, fazer), mas o facto é que as sementes da discórdia estão lançadas.
Pode a (des)União Europeia continuar assim?
O novo líder da União Europeia, Jean Claude Juncker, que foi primeiro-ministro do Luxemburgo durante uma década, usou práticas muito pouco “europeias” para favorecer o seu país em detrimento de outros – soube-se na semana que findou.
Durante o seu consulado, Juncker assinou centenas de contratos com grandes multinacionais para que pudessem fugir aos impostos noutros países. No Luxemburgo, aquelas empresas pagavam menos de 1% sobre os seus lucros.
Ora, assim é fácil para um país com apenas meio milhão de habitantes viver muito acima da média europeia. Com que autoridade e moral virá este senhor agora defender o fim da offshore da Madeira, quando ele próprio ordenou a criação da offshore do Luxemburgo?
Infelizmente para Juncker, ele é agora o líder que tem de impedir “conflitos de taxação” numa Europa que não se quer a funcionar a dois tempos e em guerra consigo mesma.
Nem carne nem peixe: o que é a União Europeia?
Neste momento em que tanto se questiona a União Europeia, há um dado que fica sempre pouco esclarecido: o que é, de facto, a UE?
A UE não é considerada um Estado Federal, visto que cada Estado membro pode sair da União a qualquer momento, e que a UE não possui Forças Armadas de dimensão significativa. É por esta razão considerada uma organização supranacional e intergovernamental.
E se compararmos a UE com o exemplo da bicentenária Federação de Estados do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos da América, verificaremos que a organização estrutural de ambos é bem semelhante.
Tal como na UE, a soberania nos EUA considera-se dividida entre os seus estados constituintes e o governo central. E para reforçar o paralelo histórico, os EUA eram uma Confederação com um governo central muito fraco antes da aprovação da sua primeira (e, até hoje, única) Constituição, em 1789. Situação nada dissimilar da europeia antes da aprovação do Tratado de Maastricht e do Tratado de Lisboa, que criaram e reforçaram, respectivamente, a União Europeia, em substituição da Comunidade Económica Europeia
No século XIX, o orçamento federal dos EUA era consideravelmente mais pequeno do que o orçamento dos Estados-membros, não tendo poder para taxar directamente os seus cidadãos e ficando dependente de taxas aduaneiras e de financiamento por parte de cada Estado.
O jovem país também tinha um exército federal muito pequeno, enquanto que cada estado tinha a seu cargo a organização das suas próprias forças de defesa (a Guarda Nacional dos EUA descende destes exércitos estaduais).
Tal como a UE, os Estados Unidos possuem uma moeda única, de cuja gestão os Estados-membros estão excluídos. No caso dos EUA, o banco central é a Reserva Federal; no caso da U, o Banco Central Europeu.
E o Conselho Europeu? Este órgão, composto pelos líderes dos 28 Estados europeus, não tem de facto equivalente nos Estados Unidos. Não tem hoje, mas já teve no século XIX, quando o Senado dos Estados Unidos, Câmara Alta do Congresso, era composto por representantes nomeados pelos líderes dos vários Estados, e não por eleição popular. A sua função, tal como a do Conselho Europeu, era representar os vários Estados-membros e os seus governos.
E, tal e qual como nos Estados Unidos da América, existe uma legislatura bicamaral na Europa, visto que, para todos os efeitos, o Parlamento Europeu serve a mesma função de câmara baixa que a Câmara dos Representantes do Congresso Norte-Americano, enquanto que o Conselho serve como câmara alta.
Portanto, não será a UE um pouco “pesada” demais para ser uma simples organização supranacional? Será que a UE já pode ser considerada uma federação?
Bruxelas evita a questão, pois o anti-federalismo ainda é uma força poderosa na Europa. Mas os indícios estão aí…
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