Fiscalistas crucificam orçamento

Aprovado na generalidade no parlamento, o Orçamento do Estado desagrada à generalidade dos fiscalistas portugueses. Rui Rio acha que nem com alterações na especialidade o documento ficará em condições.

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A votação que esta semana aprovou na generalidade a proposta do Governo socialista de Orçamento do Estado para 2021 não passou de um acto pró-forma. A verdadeira discussão decorrerá agora, ao longo de quatro semanas de debate na especialidade e de negociações de bastidores, culminando na votação final global, marcada para 26 de Novembro.

No que respeita à matéria fiscal, a proposta socialista de Orçamento introduz poucas mudanças, mas os especialistas crucificam o texto que o Ministro das Finanças, João Leão, levou ao Parlamento. Os fiscalistas consideram arbitrária e cega a medida inscrita no OE2021 que faz depender da manutenção do emprego o acesso a benefícios fiscais. Uma medida que, tal como adiantámos na nossa última edição, está ferida de inconstitucionalidade por não respeitar o princípio da proporcionalidade.

Recorde-se que a proposta do OE2021 prevê a criação de um regime excepcional e transitório que condiciona o acesso a apoios públicos (como são, por exemplo, as linhas de crédito) e incentivos fiscais por parte de grandes empresas com lucros em 2020, em função da manutenção dos postos de trabalho, sendo que considera-se que houve manutenção do emprego, no ano de 2021, se a empresa conservar um número médio de trabalhadores igual ou superior ao registado em 1 de Outubro de 2020.

Para Luís Leon, da consultora Deloitte, esta norma irá penalizar as empresas de uma forma cega, e dá o exemplo de um empregador que contrata antecipadamente novos trabalhadores perante a saída para a reforma de outros ou que deslocaliza parte da actividade para outro país e que, por esse motivo, deixa efectivamente de necessitar de manter o mesmo nível de empregos.

“Há empresas precavidas, que começam a contratar antecipadamente para passar ‘know-how’ para transferência de conhecimento, porque há trabalhadores que se vão reformar e que agora ficam apanhadas por esta medida”, referiu o fiscalista da Deloitte à Lusa, frisando que considera “discutível” que faça sentido uma empresa nesta situação ser penalizada desta forma. A norma é uma cedência em toda a linha ao Bloco de Esquerda, que mesmo assim foi nos últimos dias o principal opositor à proposta do Governo de Costa.

António Schwalbach, da sociedade de advogados Serra Lopes, Cortes Martins & Associados, por seu lado, acredita que esta medida “trará sérias dificuldades às empresas” que “por sorte consigam fechar o ano com mais de um euro de resultados positivos”.

De acordo com o OE2021, são abrangidas pelas medidas as empresas que não sejam consideradas micro, pequenas ou médias empresas ou tenham registado um resultado líquido positivo no período contabilístico respeitante ao ano civil de 2020 ou no período que se inicie em ou após 1 de Janeiro de 2020, no caso de o ano contabilístico não coincidir com o ano civil.

“Este limiar mínimo fará com que a generalidade das empresas que possam ficar ligeiramente acima deste limiar antecipem gastos que seriam tidos no futuro (pós-pandemia) para evitar este regime”, apontou o advogado António Schwalbach, especialista em questões fiscais, sugerindo que à semelhança do que acontece com a derrama estadual (no IRC) “deveria ser fixado um patamar mínimo, por exemplo, igual ao da derrama estadual, para ficar sujeito a estas medidas.

Sem critério

Também Luís Leon sublinhou a cegueira da medida, precisando que a empresa pode ser penalizada independentemente dos lucros resultados, porque “tanto vale um lucro de cinco euros, como um lucro de um milhão de euros”.

Acentuando que não há relação entre investir em inovação e desenvolvimento, beneficiando dos incentivos fiscais existentes, e o número de postos de trabalho, Luís Leon acentua ainda que a medida é “de tal forma arbitrária” que poderá fazer com que muitas empresas que fazem investigação e desenvolvimento corram o risco de perder incentivos fiscais.

Para o fiscalista da Deloitte é preciso olhar “para a medida e repensá-la”, tendo em conta o objectivo de se conseguir manter as empresas e a actividade económica.

Entre os apoios públicos e incentivos fiscais que impedem as empresas de despedir estão, de acordo com a proposta do OE2021, as linhas de crédito com garantias do Estado e, relativamente ao período de tributação de 2021, o benefício fiscal que permite às empresas deduzir uma parte da remuneração convencional do capital social, bem como o crédito fiscal ao investimento II (CFEI II), o regime fiscal de apoio ao investimento (RFAI) e o sistema de incentivos fiscais em investigação e desenvolvimento empresarial II (SIFIDE II) – este último introduzido pelo Orçamento do Estado Suplementar.

“A exclusão do acesso a benefícios fiscais referidos traduz-se, no caso de benefícios fiscais dependentes de reconhecimento, num impedimento ao seu reconhecimento na parte em que diga respeito a factos tributários ocorridos no período de tributação de 2021 e, no caso de benefícios automáticos, na sua suspensão durante o mesmo período”, refere o documento.

Nem com alterações

Entretanto, o presidente do PSD, Rui Rio, considerou que, “por mais alterações que se possam fazer no debate na especialidade”, o Orçamento do Estado para 2021 “não vai ficar em condições de fazer aquilo” que os sociais-democratas consideram que “deve ser feito”.

“Não se consegue transformar um orçamento de distribuição e que praticamente não olha para as empresas, o que é absolutamente vital, num orçamento que passa a olhar fundamentalmente para as empresas”, disse Rui Rio. “Não acredito que isso possa acontecer”.

Ao longo das negociações e debates na especialidade que decorrerão no próximo mês, até à votação final em 26 de Novembro, o Governo do PS poderá, na melhor das hipóteses, contar com apoios pontuais dos partidos da esquerda e extrema-esquerda e com uma posição altamente crítica do PSD, do CDS, do Chega e da Iniciativa Liberal.

Novo Banco e TAP 

As despesas do Estado com a TAP e o Novo Banco poderão via a ter um efeito orçamental desfavorável maior do que o estimado pelo Governo para 2021, constituindo “riscos não negligenciáveis” para o défice, segundo uma avaliação do Conselho das Finanças Públicas (CFP) contida na Análise à Proposta de Orçamento do Estado para 2021, esta semana divulgada.

De acordo com a instituição presidida por Nazaré da Costa Cabral, no caso do Novo Banco, “podendo ainda ser transferido um valor máximo de 914 milhões de euros ao abrigo do Acordo de Capitalização Contingente, a despesa prevista em contas nacionais para aquele efeito em 2021 fica bastante aquém desse valor e dos montantes transferidos nos últimos dois anos”.

Apesar de o Conselho das Finanças Públicas ter considerado a necessidade de financiamento do Fundo de Resolução (para transferência posterior ao Novo Banco) de 275 milhões de euros identificados pelo Ministério das Finanças, o que é considerado para o cálculo do défice é “o montante da despesa de capital correspondente às transferências efectuadas pelo Fundo de Resolução para aquela instituição e não as necessidades de financiamento do Fundo de Resolução”, valor que em 2019 ascendeu aos 1.037 milhões de euros.

“De acordo com a informação constante nos mapas de desenvolvimentos orçamentais do Fundo de Resolução identifica-se uma despesa de 476 milhões de euros dirigida a Instituições de Crédito, desconhecendo, no entanto, o Conselho das Finanças Públicas qual o montante correspondente a esta operação considerado na ‘outra despesa de capital’ pelo MF”, pode ler-se numa nota de rodapé do documento divulgado pelo CFP.

Já relativamente à TAP, o “próprio relatório do OE alerta para a incerteza sobre o valor que a esta empresa poderá vir a necessitar em 2021”, algo que também já foi admitido pelo ministro de Estado e das Finanças, João Leão.

O CFP recorda que as Finanças estimam que “no corrente ano a TAP utilize a totalidade dos 1.200 milhões de euros de empréstimo do Estado”, e que “para 2021 encontra-se previsto um impacto de 500 milhões de euros, resultante de uma eventual garantia a conceder pelo Estado para que a TAP se possa financiar no mercado”.

Além da TAP e do Novo Banco, o organismo independente que escrutina as contas públicas portuguesas inclui nos riscos para 2021 “o elevado grau de incerteza que subsiste sobre a magnitude, abrangência e duração da situação pandémica”, que pode levar a um impacto orçamental superior de eventuais medidas de política a adoptar. ■