Por esta altura já o Reino Unido deveria estar em colapso, a Escócia prestes a separar-se de Londres, a economia em ruínas, a monarquia abolida e os sete cavaleiros do apocalipse a passear pelas ruas da City. Isto, claro, segundo a campanha negra dos europeístas radicais. No mundo real, não só o Brexit está quase a acontecer sem grandes percalços, como agora várias agências financeiras dizem que a versão “saída imediata” sem negociações não será uma má opção para Theresa May.
O Reino Unido está de saída da União Europeia, e os federalistas europeus estão decididos a tentar travar o processo, ou pelo menos a torná-lo o mais difícil possível para os britânicos. Subiu de tom, como seria previsível, o chorrilho de ameaças e previsões catastróficas para o Reino Unido.
Nada a que os ingleses não estejam habituados. Antes mesmo do referendo, os ditos “especialistas” avisavam que a economia do país iria entrar em colapso assim que se votasse a favor da saída da UE. O voto aconteceu, o Verão passou e o desemprego no Reino Unido continua baixo, o mercado imobiliário continua forte, e o consumo aumentou. Tudo em contra-ciclo com a estagnação total que se vive na União Europeia, onde o desemprego continua elevadíssimo, especialmente entre os jovens, e o consumo em queda. As taxas de juro da dívida do Reino Unido continuam controladas, e o deficit foi reduzido em seis mil milhões de euros.
Para todos os efeitos, o Reino de Isabel II é um dos países mais prósperos e economicamente dinâmicos da Europa. A OCDE, cujo secretário-geral fez algumas previsões catastróficas sobre os impactos do Brexit, já veio a público admitir que não tinha acertado devido às acções rápidas e inesperadas do Banco de Inglaterra. Um comentário que acaba também por ser mais uma “bofetada sem mão” na União Europeia, pois cimenta a ideia de que o controlo da sua própria moeda permitiu ao Reino Unido manter a prosperidade.
Estabilidade total
Na frente política, não só o Partido Conservador conseguiu eleger velozmente uma sucessora para o primeiro-ministro David Cameron, como derrotou de tal forma a oposição que o semanário ‘The Economist’ considera que a Grã-Bretanha vai ter essencialmente um “regime de partido único” nos próximos anos.
Com efeito, o Partido Trabalhista, principal formação oposicionista, vive em clima de guerra civil depois de o seu actual líder, Jeremy Corbyn, ter dado alento às correntes trabalhistas marxistas mais radicais, cuja posição face à UE é semelhante à do PC portugues. O maior partido britânico abertamente pró-UE, o Liberal Democrata, é geralmente aplaudido com fanfarra no Parlamento Europeu, mas conta com um total de 8 deputados em 650 na Câmara dos Comuns, sendo efectivamente o PAN em versão inglesa. Segundo as sondagens, se Theresa May convocasse eleições, conquistaria uma maioria absoluta ainda mais expressiva, quase dois terços do parlamento.
Já na “província” descontente da Escócia, que recebeu tanta atenção da imprensa, a opinião pública virou bruscamente contra a saída da União britânica. Segundo as novas sondagens, a maioria absoluta dos escoceses deseja permanecer no Reino Unido e nem quer ouvir falar em novo referendo.
“City” fica em Londres
Outra ameaça constante é a de que o sector financeiro do Reino Unido, concentrado na histórica City of London, iria abandonar o país, causando um enorme “buraco” económico, visto representar uma parcela substancial do PIB nacional. O que a Bloomberg noticiou esta semana, no entanto, é que os “oráculos da folha de excel” se esqueceram de um “ligeiro” pormenor: as empresas precisam de escritórios para operar, e não existem edifícios comerciais suficientes na Europa para albergar todas as empresas actualmente sediadas na “City”. E cada uma destas empresas precisa geralmente de edifícios com capacidade para albergar vários milhares de funcionários num único local.
Ao todo, estima-se que um grande êxodo da “City” exigiria um milhão de metros quadrados de espaço comercial de qualidade na Europa continental. Dublin, geralmente citada como a cidade preferida para o hipotético exílio dos inúmeros bancos e seguradoras sediados em Londres, tem o seu espaço comercial quase totalmente ocupado por empresas de tecnologia. Entretanto, as torres e arranha-céus de Paris, Amesterdão e Frankfurt estão quase totalmente ocupados.
Face a estes constrangimentos, as empresas terão de considerar se os custos de sair da City valem a pena. A Moody’s certamente considera que não, notando que mesmo na eventualidade de um Brexit imediato “os impactos directos seriam modestos” e sentir-se-iam principalmente através de “um ligeiro aumento das despesas administrativas” algo que a empresa considera que reduziria um pouco a lucratividade, mas que “pode ser facilmente gerido”.
“Leave now!”
Desmascaradas as previsões catastrofistas e provado o acerto da decisão de abandonar o navio fantasma da Desunião Europeia, muitos dos colegas parlamentares de Theresa May defendem agora que a primeira-ministra avance para uma saída imediata. Richard Tice, um dos líderes do movimento “sair significa sair”, afirmou mesmo que era preferível sair “sem acordo do que com um mau acordo”, uma opinião com a qual uma grande parte do Governo concorda, incluindo o ministro encarregado da pasta do “brexit”, David Davis.
Há sinais de que a cautelosa Theresa May terá ouvido os conselhos dos seus colegas de partido, mas para já a primeira-ministra não quer abrir o jogo. Theresa afirmou, no entanto, que não receava a ameaça de veto das negociações de saída por parte de algum Estado-membro: a líder ‘tory’ tem a certeza de que “os 27 vão assinar um acordo connosco” , pois apenas têm a ganhar com isso, e não deixará de ser “ambiciosa” nas suas exigências.
Tem espaço de manobra: a UE encontra-se politicamente fragilizada, dividida num número de subgrupos que não se entendem entre si. Por outro lado, o Parlamento Europeu nomeou um conhecido federalista para encabeçar as negociações com o Reino Unido, dando sinal de que não aceitará menos do que uma rendição total e completa de Londres. Logo, se se trata de guerra sem quartel, em vez de esperar dois anos de “pântano”, o Parlamento em Londres pode simplesmente declarar que o Reino Unido já não faz parte da UE, e o país reconquistará instantaneamente a sua plena soberania. Apesar de os europeístas gritarem que tal seria “ilegal”, não existe qualquer tribunal com jurisdição para “julgar” o Reino Unido, e a UE não possui um exército para forçar os britânicos a aceitar as exigências de Bruxelas.
Comércio continua
Fora da UE, mesmo que unilateralmente, o Reino Unido continuará a exportar para todo o planeta segundo as regras da Organização Mundial de Comércio. As temidas “taxas alfandegárias” para os produtos britânicos entrarem na UE não ultrapassarão, segundo revelou o jornal ‘The Telegraph’, a média de 2,4 por cento. Certos produtos, como automóveis ou têxteis, poderão pagar mais: 10 ou 12 por cento. Mas os especialistas notam que, como a maioria das exportações do Reino Unido nestes segmentos é de alto valor e baseada em marcas de luxo, o impacto não será tão grande como esperado. Note-se que muitos produtos, como por exemplo a vasta maioria dos aparelhos electrónicos de que os europeus tanto gostam, têm origem em países fora da UE, e nem por isso se deixam de vender. Países como a pequena Islândia permanecem fora do mercado único, e não faliram.
Por sua vez, o Reino Unido fica também livre para reactivar as negociações de um espaço de comércio livre na Commonwealth, projecto que teve de ser abandonado em 1973. Tanto o Canadá como a Austrália e a Nova Zelândia já mostraram abertura à ideia. O primeiro-ministro da Austrália afirmou durante a conferência do G20 que os planos informais já se encontravam numa “fase avançada”, que a Austrália está a prestar “assistência técnica” nos acordos comerciais, e que tinham intenção de ter um acordo assinado “rapidamente”, assim que o Reino Unido saísse de vez da UE.
Theresa May está a preparar a sua estratégia para o brexit, mas os europeístas têm de se convencer de uma vez por todas de que “brexit significa mesmo sair”. A bem ou a mal.