Os defensores da permanência do Reino Unido na UE nem por um minuto pararam de denegrir quem queria votar a favor da saída. Com o “projecto medo” tentaram aterrorizar o eleitorado. Mas nada funcionou: o Reino Unido está mesmo de saída, com total legitimidade democrática. Apesar de ainda haver quem queira anular os resultados do próprio referendo.

Fica para a História: às 4:39 da madrugada, o locutor da BBC David Dimbleby anunciava ao mundo que o Reino Unido vai mesmo abandonar a União Europeia. Horas antes, o chefe de uma das principais empresas de sondagens, a YouGov, jurava a pés juntos que o “ficar” ia vencer, talvez até por uma margem de 8 pontos.

Nos meses de campanha que antecederam o voto, os apoiantes do “ficar” certamente criaram uma narrativa em que o “sair” parecia impossível. Afinal, quem era a favor do Brexit também era certamente um “xenófobo”, um “racista” e um “imbecil”. Seria um erro, no entanto, denegrir completamente as sondagens, visto que quase metade acertou ao afirmar que o “sair” iria vencer.

Os defensores do “ficar”, nessa altura, alteraram o discurso, dizendo que o que contava eram apenas as sondagens feitas por telefone. Quando algumas dessas sondagens não deram maioria ao “ficar”, chegou-se ao ridículo de alguns órgãos de comunicação social considerarem os mercados de apostas como uma fonte credível de informação sobre a indicação do voto.

Mesmo depois do acto eleitoral, tentou-se criar a ideia de que apenas os velhos e os menos qualificados votaram no “sair”. Quem afirma este “facto”? As mesmas empresas de sondagens que já se enganaram em três actos eleitorais seguidos. Empresas como a YouGov, que diz que 75 por cento dos eleitores dos 18 aos 25 anos queriam ficar na UE, mas que também deu uma vantagem de oito por cento ao “permanecer” na noite em que o “sair” venceu.

Os defensores da permanência, no entanto, agarram-se a estes “factos” como forma de evitar aceitar a existência de opiniões contrárias às suas. Jochen Bitter, editor político do jornal alemão ‘Die Zeit’ e colaborador do ‘New York Times’, reflectiu bem o espírito dos europeístas quando chamou aos defensores do Brexit “homens velhos zangados”, e afirmou que “já não se pode pensar em reconciliação entre as visões opostas de destruição e progresso. Os homens velhos e zangados não podem ser apaziguados, a sua xenofobia não pode ser controlada ou canalizada para cooperação construtiva”.

Vale tudo? Vale, pois!

A campanha de desinformação foi, e continua a ser, substancial. Até se tentou passar como “facto” que quem queria o Brexit era uma facção tão minoritária que uma afluência grande às urnas os prejudicaria, apesar de não existir qualquer prova empírica de tal coisa. Na hora do voto, a afluência foi elevada — 72 por cento dos eleitores registados — e o “sair” venceu na mesma.

Entretanto, o “projecto medo” falhou redondamente. A facção pró-UE “recrutou” o parecer de centenas de especialistas, alguns deles financiados pela própria UE. O Chanceler do Tesouro (equivalente ao nosso ministro das Finanças) publicou um orçamento de “fantasia”, onde ilustrava o que, segundo ele, iria acontecer caso o país saísse. Neste orçamento de “conto de fadas”, que membros do Parlamento quase unanimemente afirmaram que iriam rejeitar caso fosse a votos, estavam previstos aumentos de impostos de 15 mil milhões de libras por ano, um aumento de cinco por cento nos impostos sobre os combustíveis e o álcool, e ainda um corte de cinco por cento na polícia, nos transportes e no Sistema Nacional de Saúde.

Erro crasso: o mesmo país que se recusou a render em 1940 — quando o embaixador dos EUA em Londres lhe dava duas semanas até cair nas mãos do inimigo — não reagiu bem a estas ameaças. As declarações impetuosas e insultuosas de Juncker, presidente da Comissão Europeia, que comparou os britânicos a “desertores”, não caíram bem junto do povo. As declarações de Barack Obama, de que os britânicos iriam “ficar para o fim da fila” na negociação de acordos de comércio, caíram no ridículo no Reino Unido. Não só os britânicos são dos maiores investidores externos nos EUA, como o conseguiram sem que exista neste momento qualquer tipo de acordo comercial entre os EUA e a UE.

Quanto ao “papão” da anunciada “crise económica” causada pelo Brexit, o feitiço voltou-se rapidamente contra o feiticeiro e os índices do Stock Exchange (a Bolsa da City) recuperaram após algumas horas, ainda que tal não tenha sido noticiado em Portugal. No jornal financeiro ‘The Wall Street Journal’, os editores advertiram que os impactos imediatos do Brexit acabaram por ser “uma mera nota de rodapé” na história financeira.

Apesar de todas as críticas aos “perigosos nacionalistas”, os defensores do “permanecer” não têm qualquer problema em incentivar a veia nacionalista dos escoceses e dos irlandeses do Norte. E apenas não fazem o mesmo aos galeses porque esses votaram claramente a favor da saída. Um dos elementos chave do “projecto medo” era a ameaça de que a Escócia iria sair do Reino Unido. Mas o mais provável é que um novo referendo nas Terras Altas desse resultado igual ao de 2015, confirmando assim a aliança com o resto do Reino. John Curtice, um dos poucos académicos que previram correctamente o resultado do referendo, estima que “60 por cento das pessoas na Escócia podem ser consideradas como eurocépticas”.

Subverter o voto

Se hoje, terça-feira, dia em que este jornal chega às bancas, parece que todos estes problemas são questões do passado, é preciso não esquecer que é com base nestes argumentos e nestas tácticas que os defensores da União Europeia estão activamente a tentar subverter a vontade democrática do povo.

O Reino Unido não tem uma Constituição escrita, sendo governado por uma série de convenções políticas e por legislação parlamentar dispersa. Um elemento, no entanto, é central: o da supremacia parlamentar, ou seja, a ideia de que o Parlamento (compreendendo a Rainha, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns) é a única fonte legal de poder. Por esta razão técnica, o Parlamento tem de autorizar a invocação do artigo 50º do Tratado de Lisboa, que provocará a saída do Reino Unido da UE.

Da esquerda à direita, os parlamentares afirmaram que irão respeitar a vontade popular quando chegar a hora do voto, mas as forças pró-UE começaram a movimentar-se para pressionar os deputados a votar contra a vontade popular. Incentivados pelo “facto” não confirmado de que terão sido os eleitores mais velhos a decidir o resultado, o ‘lobby’ europeísta vem organizando manifestações diárias em frente ao Palácio de Westminster, edifício que alberga as duas Câmaras legislativas do Parlamento.

Os activistas desta minoria barulhenta procuram anular os resultados ao exigir um novo referendo através de uma petição, alegando que o resultado foi demasiado renhido para ser válido. Os defensores de uma nova votação consideram que um referendo só deveria ser vinculativo quando um dos lados alcança 60 por cento dos votos, com uma afluência às urnas de 75 por cento. Outro argumento é a narrativa de que os eleitores votaram de forma inconsciente, e que muitos estão arrependidos da sua decisão, logo justificar-se-ia a repetição do referendo, ou até mesmo a anulação do resultado. A base de sustentação deste “facto” é nula. Outros ainda querem que se realize uma eleição legislativa antecipada, e que os resultados dessa eleição se devem sobrepor aos resultados do referendo.

UE resigna-se

Se o “vote remain” continua a tentar subverter a vontade popular, a própria UE já se resignou aos factos, e até pede que a invocação do artigo 50º aconteça o mais rapidamente possível, em vez de daqui a três meses, como o demissionário David Cameron queria. O discurso catastrófico de uma UE vingativa começa, entretanto, a evaporar-se: a UE precisa de que a segunda maior economia da Europa se mantenha saudável. O presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, pediu “estabilidade para os dois lados”. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, e considerada por muitos como a verdadeira líder da UE, referiu que era necessário “encontrar as respostas certas” e afirmou que não havia necessidade de as negociações serem “desagradáveis” porque os vários países ainda se “vão encontrar de novo, na NATO, no G7, no G20 e por aí adiante”. O Reino Unido é um dos principais parceiros comerciais da Alemanha, e estas declarações são sinal de que a ameaça de o Reino Unido se tornar um Estado pária eram um exagero dos defensores da permanência.

No fim, a única voz na UE que exigia sangue era a de Jean-Claude Juncker, o presidente da Comissão Europeia que ficou completamente descredibilizado por este resultado, bem pelo caos que reina na organização. Tendo prometido tornar a Comissão um órgão mais “político”, a opinião geral é que mesmo que o antigo primeiro-ministro do micro-Estado do Luxemburgo não se demita, a Comissão vai novamente ser reduzida a um órgão meramente administrativo, conforme os estatutos da UE. Os líderes dos principais países da UE chamaram a si a responsabilidade de reformar a organização, ignorando largamente o luxemburguês nas mais recentes declarações.

Forças anti-UE em França, na Holanda, em Itália, na Dinamarca e na Suécia querem agora um referendo similar. Na Holanda, 54 por cento da população afirmam querer decidir de forma democrática se desejam permanecer na UE. A anulação dos resultados democráticos do referendo, ou negociações longas e punitivas, com custos elevados para ambos os lados, podem dar poder a estas forças políticas. No entanto, é agora claro que as forças pró-UE vão lutar até ao fim antes de respeitarem a vontade democrática do povo, dê por onde der. Vale mesmo tudo.