Alpoim Calvão, um Grande de Portugal

“Apesar deste tempo em que os valores nada valem, a sua memória está e estará a salvo porque passou do campo da Memória para o da História e daí para a Lenda”

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RUI DE AZEVEDO TEIXEIRA

Guilherme Almor de Alpoim Calvão (1937-2014), como qualquer um de nós, ‘era do tamanho daquilo que via’, mas o que via era longo no tempo e imenso no espaço. Vivia sentindo o velho tempo português. “Sinto-me com nove séculos agarrados aos sapatos”, confessava-me. 

Quanto ao seu espaço, este estendia-se de Chaves a Moçambique, de Lisboa à Guiné, do Alfeite ao Brasil, de Cascais a Goa, do Chiado a Timor. Mas também a Paris, Milão ou Nova Iorque. Era um homem, mais do que de si próprio, da Pátria e do Império, entidades que nele se confundiam. Acabou como um defensor da Lusofonia, a sua “segunda Pátria”.

O “Grande“ e a guerra

Fisicamente, o comandante Calvão era impressionante. Tinha o rosto de um centurião, um rosto antigo e poderoso, marcado pela força de carácter e pela inteligência. O corpo era de um peso pesado que se movia com majestade. Homem de uma força férrea, certa vez, numa discussão de trânsito em Lisboa, saiu do carro, subtraiu o antagonista ao seu assento, elevou-lhe os calcantes do chão e sentou-o no tejadilho do seu próprio carro. Praticava boxe e não poucos provaram que os seus murros eram autênticos coices para a frente. Ao físico excepcional correspondia uma coragem extraordinária.

Na Guiné Portuguesa, com o nome de guerra “Grande”, cumpriu duas comissões que lhe deram a Torre e Espada com Palma, a mais alta condecoração portuguesa. Aí, paredes meias com o ‘unheimlich’ freudiano, sente como nunca a estranha sensação de ser um eco longínquo dos grandes navegadores e capitães do Império.

Na terra de Teixeira Pinto, Nino e Cabral, foi um farol de coragem, de liderança e de inteligência estratégica. Nos combates, nunca se mostrou atrapalhado, nunca teve “os pés no ar”, e teve sempre a mala pronta para a última viagem, para morrer, mas a matar. Fez mais de oitenta operações. Duas delas destacam-se: a Tridente, mais de dois meses de tiros para correr com o PAIGC das Ilhas de Como, Caiar e Catunco, operação que serviu de “laboratório” para o seu mítico Destacamento de Fuzileiros Especiais 8; e a Mar Verde, a sua operação icónica.

O ataque a Conakry, a última grande operação anfíbia portuguesa, foi a que, 555 anos depois, simbolicamente, fechou o Império aberto com a nossa primeira grande operação anfíbia a Ceuta, em 1415.

Depois da Guiné, foi comandante da Polícia Marítima no Porto de Lisboa. Continuou, porém, na Frente, agora na Frente da Retaguarda. É o período em que mais se dedicou às informações e à espionagem (Spínola chega a prometer-lhe a chefia da DGS). Nestas novas funções, afundou, pelo menos, dois navios que transportavam armas para a guerrilha anti-portuguesa.

No caso Bretagne, esvaziou as caixas de um navio dinamarquês com material para o MPLA e, num golpe de humor prático, encheu-as com areia e os afamados tridentes masculinos das Caldas.

A “revolução dos cravos” e a respectiva descolonização danificaram-lhe a alma de patriota, de português intenso. Fiel à ideia do Grande Portugal e a Spínola, seguiu então o preceito de Torga de que “às vezes, para se ser por isto, tem de se ser contra isto”. Tratou à lei da bala e da bomba sedes do Partido Comunista e a praga de tarados políticos que empurravam o PREC pelos alegres caminhos da loucura. Nesse tempo de clandestinidade activa, percorreu a pé o país, comendo o que calhava, descansando em telhados e dormindo em cemitérios.

Fechado o PREC com a actuação dos comandos chefiados pela dupla Neves/Eanes, Alpoim Calvão não se deixou cair na política. Aliás, para político, não tinha os defeitos necessários. Faltava-lhe uma educação pela intriga, o espírito troca-tintas ou a baixa arte de falar sem nada dizer. Ele era o exuberante oposto disso tudo, o que fazia era sempre determinado pelo carácter e pela honra.

Entretanto, o país passava da descolonização à bruta para a internacionalização apressada. Trocam-se quinhentos anos de Sul por um cheque manhoso do Norte, sem se ter previamente feito uma reflexão a sério sobre o ‘nacional identitário’. Sintomático foi o caso de Eduardo Lourenço, o quase António Ferro da democracia, que dissertava sobre a Questão Colonial sem verdadeiramente saber do assunto, como o provou recentemente Diogo Ramada Curto.

Alpoim Calvão

O grande aventureiro e a arte

Seguiu-se a fase das aventuras civis, aventuras de alto coturno que tornaram Calvão o maior aventureiro português do século XX. Fez então negócios por todo o mundo. No Brasil, meteu-se no perigoso mundo do garimpo, enriqueceu e montou uma fazenda do tamanho de 14 mil campos de futebol.

No negócio da fazenda Caiçara, driblou o financeiro Bulhosa, que o pretendia fintar. Na Guiné, onde fora o inimigo número um do PAIGC e passará a ser reverenciado como o grande amigo dos guineenses, teve uma fábrica de descasque de caju. Ligado aos Explosivos da Trafaria e depois à Companhia de Pólvora e Munições de Barcarena, negociou armamento aqui e ali.

Na Somália, numa aposta com o ministro da Defesa, ganha dez camelos e um trinta e um. Que destino para tanta bossa?! Além dos negócios mais variados, caça tesouros artísticos. Tenor lírico amante de Verdi que chegou a cantar no São Carlos, tinha uma alma de artista, mas não era nada peco a caçar ou a negociar arte. Um sonhador prático. Alguns dos seus quadros estão expostos no Museu de Arte Antiga e ao Museu da Marinha oferece o altar portátil, de carvalho, de meados do século XV, da nau São Gabriel, a nau capitanea da Armada de Vasco da Gama da primeira viagem à Índia.

Calvão conjugava na perfeição a selvajaria da guerra com a requintada delicadeza da arte. Era, numa palavra, a Selva e o Scala num só.

No meio da vida aventureira, repleta de grandes lances, nunca deixou de ser um grande chefe de família. A Alda, a esposa de sempre e o último rosto que viu antes de entrar na eternidade, nunca faltou o seu apoio decisivo na educação dos quatro filhos, um deles deficiente profundo.

O grande alvo da subcultura mediática

Alpoim Calvão representava o que a ditadura mediática do politicamente correcto mais odeia: o grande militar, a ideia de pátria, a família tradicional, o carácter e, mais do que a masculinidade, a macheza que não pede desculpa por o ser. Ele era o homem tradicional, conservador, e por isso mesmo, ironicamente, um subversivo do Sistema. A Press Corps ataca-o com ‘factos falsos’, como no caso do “roubo” da estátua do Presidente Grant dos EUA oferecida à Guiné-Bissau.

O “Grande” desprezava, enfastiado, a pequenada do politicamente correcto a quem os donos do Sistema distribuem rebuçados. Também desprezava, ainda mais enfastiado, o Nestbeschmutzer, o “cospe no ninho”, ou a atitude queirosiana-catastrofista do comentariado que se acha fino a dizer e a escrever mal de nós, da nossa História.

Apesar dos ataques, ou do silêncio, dos ‘media’, Alpoim Calvão não deixava nem deixará de ser recordado com altíssimo apreço pela maioria dos portugueses de meia idade e mais velhos. Na secreta paisagem psicológica dos seus inimigos, também não é esquecido, não poucos esforçam-se por não o admirar.

Alpoim Calvão começou por ser, com todo o seu ser, um homem da Pátria e do Império e acabou por aderir, de corpo e alma, ao império da Lusofonia. Doutro modo, foi um homem da Expansão que se sentiu “apertado”, preso, no Fechamento do qual conseguiu libertar-se pela Lusofonia.

Não foi um herói sem glória nem era apenas um herói do Passado, como os matraquilhos da correcção política querem fazer crer. A sua vida, sempre com um pé na portugalidade global, era e continuará a ser cada vez mais vista como um exemplo de Futuro na Lusoesfera.

O Grande Fim nos Jerónimos

Alpoim Calvão morreu ao nascer do dia 30 de Setembro, depois de longos meses acompanhado pelo fantasma da morte que tantas vezes enfrentou. A missa de corpo presente nos Jerónimos, com a igreja a rebentar pelas costuras, e, de seguida, a grandeza comovente da cerimónia militar, no cemitério dos Olivais, garantem que será da lei da morte libertado. Por muito tempo.

Apesar deste tempo em que os valores nada valem, deste peganhento tempo que nos insulta, a sua memória está e estará a salvo porque passou do campo da Memória para o da História e daí para a Lenda. Guilherme Almor de Alpoim Calvão habita esse lugar detestado pelos historiadores mas onde os poetas e os povos preferem ter os seus maiores, sagrando-os.

Se Deus quiser, e vai querer, o meu amigo Guilherme, o meu Cocoana, depois de uma vida cheia de dever, de serviço e de aventura, terá a paz eterna que merece, a “paz que é a tranquilidade da ordem de todas as coisas” (Santo Agostinho). Se Deus não existir, será então Atheneia que velará pelo último Grande de Portugal.

Rui de Azevedo Teixeira é ensaísta, professor universitário e antigo comando. Elemento do Bando dos Cinco com Alpoim Calvão, Almeida Bruno, José Carvalheira e Ângelo Lucas.[email protected]