“Cercado”, o novo livro do jornalista Fernando Esteves, da revista ‘Sábado’, caiu como uma bomba na classe política. As revelações sobre o ex-primeiro-ministro socialista e actual preso preventivo n.º 44 da cadeia de Évora são um retrato impiedoso das relações escandalosas entre o poder e o dinheiro. Chocante.

Na mesma semana em que o Ministério Público realizou novas buscas no âmbito do processo que mantém em prisão preventiva o antigo chefe do Governo – suspeito de crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais – foi lançado um livro que já está a fazer correr muita tinta… e promete fazer correr ainda muito mais. O livro “Cercado” (editora Matéria Prima), do jornalista Fernando Esteves, editor de política da revista ‘Sábado’, tem como subtítulo “Os dias fatais de José Sócrates” e, ao longo de 292 páginas, disseca em cada capítulo os vários casos polémicos que marcaram a ascensão e queda do ex-primeiro-ministro. Aqui ficam alguns excertos.

20 mil euros em três dias

A obra descreve com pormenor a alegada entrega de dinheiro por parte do empresário Carlos Santos Silva, amigo e co-arguido na Operação Marquês, como foi baptizado o processo-crime às ordens da qual o ex-primeiro-ministro foi investigado durante mais de um ano e detido, a 21 de Novembro de 2014, no Aeroporto de Lisboa.Curiosamente, o nome de código da operação foi escolhido porque muitas das entregas de dinheiro se passavam em casa de Sócrates, perto da Praça do Marquês de Pombal, em Lisboa. De acordo com o livro, as entregas sucediam-se à média de três por mês, por vezes com uma frequência vertiginosa.

A 2 de Abril de 2014, Carlos Santos Silva terá entregue pessoalmente a José Sócrates 10 mil euros em notas. O ex-primeiro-ministro precisava de pagar à sua secretária pessoal, saldar a sua conta na agência de viagens Top Atlantic e cobrir as despesas de alojamento em Paris, onde manteve casa depois de terminar o mestrado em Sciences Po. Passados dois dias, a 4 de Abril, o ex-primeiro-ministro recebia do amigo mais 10 mil euros. “Aquela outra coisa”, como disse durante o telefonema, não tinha sido suficiente. Convém lembrar que, segundo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa citado pelo jornal ‘i’, “o nível de gastos” de José Sócrates, “não se compatibiliza com a assumida falta de dinheiro em nome próprio”.

O Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) obteve provas de que Sócrates gastava quatro vezes mais do que era o seu salário enquanto primeiro-ministro. O livro de Fernando Esteves cita um despacho do juiz Carlos Alexandre em que são detalhadas as 40 entregas de dinheiro a Sócrates por Santos Silva. Aí surgem as palavras “livros” e “fotocópias” que, segundo o Ministério Público, se referiam a dinheiro e “serviam para quase tudo: para pagar roupa, salários, rendas, condomínios, viagens”.

As injecções da campanha

“Rumo à derrota” é o título do capítulo de “Cercado” dedicado à campanha eleitoral para as legislativas de 2011. Ali se conta que “nos derradeiros dois dias na estrada, o socialista estava, de facto arrasado”. A tal ponto que “um médico deslocava-se ao final da tarde ao seu quarto de hotel, onde lhe administrava injecções para que aguentasse o comício nocturno”.

O autor do livro cita dois ex-colaboradores de Sócrates, que lhe falaram em ‘off’: “Um sintoma do nosso estado de espírito era o facto de nesse período termos falado muito sobre o discurso de derrota, embora também houvesse um de vitória”, disse um; enquanto outro lembrou: “Nunca o tinha visto assim, Há um momento em que parecia desistir (…) acho que ele sempre acreditou que a eleição estava perdida.”

Rodrigues dos Santos e a banha da cobra

24 de Março de 2014. O jornalista José Rodrigues dos Santos recebe um sms de Sócrates, com quem fala depois ao telemóvel. Na noite anterior, o pivô da RTP tinha sujeitado o ex-primeiro-ministro a uma rajada de perguntas de que não estava à espera. Sócrates “acusou-o de lhe ter montado uma cilada, uma canalhice. O jornalista sente necessidade de pôr água na fervura: ‘Olhe, vou-lhe dizer o que as pessoas que o senhor conhece disseram sobre a entrevista: o Zé Rodrigues dos Santos é um cabrão, fez isto e fez aquilo, e tu aguentaste-te muito bem, tiveste calma e deste grandes respostas. Tu é que ficaste a ganhar. Disseram-lhe ou não lhe disseram isso?’ (…) Sócrates recorda-lhe algo que tinha dito num dos programas de comentário com Cristina Esteves. Rodrigues dos Santos responde de forma abrupta (…) ‘O senhor acha-me com cara de ter tempo a perder para ouvir políticos a aldrabarem as pessoas e a venderem a banha da cobra?'”

Judite e a “tentativa de condicionamento”

20 de Abril de 2009. O telefone de Judite de Sousa toca. (…) Sócrates deseja falar com a jornalista antes de esta o entrevistar. (…) Sócrates trata-a com distância. Desde que Judite casara com o social-democrata Fernando Seara – que derrotara Edite Estrela, uma das suas maiores amigas, na eleição para a Câmara Municipal de Sintra -, que a sua relação esfriara. (…) A jornalista registou no seu diário profissional o relato do diálogo: (…) ‘Começa a gritar. Tenho de afastar o telemóvel (…) Continua a gritar. Diz que discorda dos meus critérios editoriais, digo- -lhe que não são meus; são da RTP. Nada importa. Não ouve o que eu digo. A conversa termina sem nexo. Foi uma tentativa de condicionamento.’”

A licenciatura

Josesocrates2006“(…) António Caldeira, um professor anónimo de Alcobaça, acaba de juntar mais uma peça ao enorme puzzle em que se transformou a sua investigação à suposta irregularidade do curso de engenharia de José Sócrates.

Tudo começara uns meses antes, através de um simples comentário de um leitor do seu blogue – o Portugal Profundo. O apontamento escrito remetia para outro blogue: o Porta Bandeira. Aí, num post intitulado “O passado misterioso de Sócrates”, dava-se conta de que o primeiro-ministro “mascarara” a sua licenciatura – ou seja: de engenheiro pouco teria. (…)

21 de Fevereiro de 2005. José Sócrates é dono há 24 horas de uma maioria absoluta mas ainda não estreou o seu futuro gabinete em São Bento. No entanto, Caldeira não vai esperar que isso aconteça. Quer avançar já. Contacta Maria Rui, a assessora do líder do PS. Pretende confirmar as informações a que tivera acesso. A resposta é surpreendente: vão ajudá-lo na procura da verdade.

Um dia depois, o professor recebe um telefonema da directora dos serviços jurídicos da Universidade Independente (Uni). Tem duas notícias para lhe dar: 1) claro que José Sócrates é licenciado; 2) obviamente que as informações pretendidas (notas, equivalências, resultados de exames, tudo o que fora colocado em causa no post do Porta Bandeira), são da reserva da intimidade da vida privada. Nada que trave Caldeira: no dia seguinte, a 23 de Fevereiro, publica mesmo o texto mais lido da história do Portugal Profundo: «Os cursos de Sócrates». (…) Assim que é informado da publicação, Sócrates fica furioso. Um «professorzeco» ousa colocar o seu estatuto em causa. (…)

Teríamos de chegar a 2007 para que um jornalista de uma publicação de referência fizesse do assunto notícia. Ricardo Dias Felner, que era então responsável pela pasta de São Bento no Público, foi incentivado pela sua editora a pegar no tema. (…)

15 de Março de 2007. (…) Sócrates está aflito. O cerco do ‘Público’ ao aluno número 95.385 é real – é bem apertado. Precisa rapidamente de um aliado – e Luís Arouca, reitor da Uni, que estava desesperado por ajuda governamental para salvar a instituição, é o parceiro mais óbvio. (…)

José Sócrates: (…) eu ligo-lhe por causa do seguinte, pá: anda para aí uma campanha absolutamente miserável, e muito semelhante à que me fizeram aquando da campanha eleitoral pretenderam insinuar que eu era homossexual… e que visa, no fundo, dizer o seguinte: ele não concluiu a licenciatura. Esta campanha é uma campanha recente que também está ligada com a Independente e com problemas na Independente, não é verdade?

Luís Arouca: Sim, sim…

JS: Bom, isto é uma campanha que se passa ao nível desses répteis, ao da blogosfera e do anonimato… e da ordinarice… à qual eu tenho reagido com superioridade e indiferença que acho que é a única atitude para com essa canalha.

LA: Absolutamente, absolutamente.

JS: Mas recentemente ligou~-me um jornalista do Público, imagine, dizendo, enfim, que tinha conhecimento destas coisas que circulavam através dos blogues e que queria tirar isto a limpo. Eu decidi falar com ele. Lá lhe contei a minha história académica, bacharelato em Coimbra, fui para o ISEL (Instituto Superior de Engenharia de Lisboa), a meio do ISEL decidi ir para a Independente, onde me licenciei; e depois fui tirar o MBA no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa). Mas ele queria confirmar umas coisas e perguntava-me notas na Independente e equivalências (…) e pediu-me autorização para ir ao meu dossiê na Independente. Eu disse-lhe que não tinha nenhum problema com isso, não tenho nada a esconder. (…)

JS: A ideia deles… esses marotos, é basicamente a seguinte: ele foi para a Independente, já era secretário de Estado, o que eles procuram insinuar é que a Independente me deu basicamente a licenciatura.

LA: É o que eles pretendem insinuar, claro. Mas é um disparate que já está suficientemente rebatido. Você é que tem que dizer, ou, se quer que a gente lhe diga as notas e as equivalências ou pura e simplesmente manda-os a tal lado… é como você quiser.

JS: Eu estava a pensar, se o professor me fizesse esse favor, era telefonar ao jornalista a dizer que falei com o senhor reitor e que ele o receberá e mostrará todos os documentos.

LA: Ele chega cá com essa indicação sua e está perfeito, pá.

JS: O que é que eu lhe pedia? A ideia deles é… Universidade Independente, ele já era secretário de Estado e tal… e portanto facilitaram. O que eu acho importante… Nós podíamos combinar, o que é verdade; primeiro, nós só nos conhecemos pessoalmente depois de eu terminar a licenciatura…

LA: É a pura das verdades…

JS: … A pura das verdades. Em segundo, este processo seguiu os seus trâmites… Nós temos muitos alunos que vieram do ISEL.

LA: E todos tiveram equivalências como você teve. (…)

JS: Se o professor chamasse a si esses papéis e lhes desse uma vista de olhos, ainda poderíamos voltar a falar.

LA: Com certeza. Eu vou ver os papéis e ligo-lhe amanhã e depois quando você quiser… no fim-de- -semana… um dia qualquer, quando entender estou ao seu dispor porque realmente estes gajos precisam de uma lição, pá.

JS: Ouça, quer dizer, eu já tenho a experiência suficiente e a pele dura para lidar com esta gente ignóbil, absolutamente ignóbil.

LA: É verdade, é verdade. Aliás, deixe-me felicitá-lo, eu sempre me sinto um homem ligado a vocês, não é? Embora não esteja inscrito no partido, mas devo-lhe dizer que você tem feito uma acção brilhante. (…)

No mesmo dia 15 de Março, Sócrates pede novamente à sua secretária para ligar a Arouca. Quer falar com ele sobre um tema sensível: a prova da cadeira de Inglês Técnico, uma disciplina que não fazia parte do seu plano de estudos inicialmente previsto, mas que foi incluída manualmente e que Luís Arouca fez questão de leccionar – apesar de nunca ter ministrado aulas de inglês anteriormente. A avaliação consistiu de um trabalho previamente discutido por Arouca e Sócrates num almoço realizado no Pap’Açorda, entre pastéis de bacalhau e arroz de tomate. (…)

JS: Eu até me lembro de uma cadeira ter feito directamente consigo…

LA: Fez Inglês Técnico…

JS: …Inglês Técnico… Talvez até fosse bom ignorar isso… ou dizer “olhe fez comigo e foi aí que eu o conheci e tal” (…)

16 de Março de 2007. Foi difícil, mas possível. Finalmente Ricardo Dias Felner fala pessoalmente com o reitor e tem acesso ao processo, que consulta e fotocopia. (…) À mesma hora, em São Bento, Sócrates está ansioso por saber tudo sobre a visita de Felner à Uni. Pede à secretária para ligar a Arouca. (…) A chamada termina e Sócrates não quer acreditar que a ingenuidade do reitor seja inversamente proporcional à dimensão de um micróbio. Como foi possível fornecer as fotocópias do processo a Felner?! Agora é oficial: o ouro está nas mãos do bandido. (…)

22 de Março de 2007. Se o ódio e a irritação fossem material inflamável, Lisboa ardia nesta manhã, no preciso micromilésimo de segundo em que Sócrates olha para a peça assinada por Felner. Tanta conversa, tanto tempo, tanta pressão, frenesim e excitação para nada. O texto sai – e o socialista explode. (…) Apesar de todas as dúvidas, a verdade é que o tempo, devidamente empurrado pela avalancha da actualidade, encarrega-se de ir fazendo a poeira baixar. Paulatinamente, Sócrates volta a poder respirar. Até que, em 2009, o advogado José Maria Martins, que ganhara visibilidade pública na defesa de Carlos Silvino – o motorista da casa Pia condenado à cadeia pelo crime de pedofilia –, decide avançar com uma acção de nulidade da licenciatura do então líder do Executivo. (…) Felizmente para o chefe do Governo, resolve-se em velocidade supersónica: apenas duas semanas após a apresentação da acção, as procuradoras Cândida Almeida e Carla Dias decidem-se pelo seu arquivamento. (…)”