FRANCISCO LOPES SARAIVA
Artigo publicado a 26 de Agosto de 2014
Há uma diferença substancial entre os números brutos que nos chegam das estatísticas e a realidade que é contada pela boca de jovens desesperados a O DIABO. Os incentivos do Governo ao emprego estão a ser desvirtuados e, na prática, a abrir a porta a uma autêntica escravatura em pleno século XXI.
São histórias que têm de ser contadas e que envergonham um País que se diz evoluído. O discurso da crise não pode ser desculpa para todos os erros cometidos. Há cada vez mais jovens a trabalhar abaixo do ordenado mínimo nacional. Há empresas que vivem de estagiários e dos “incentivos” que o Estado dá ao emprego.
São milhares de casos por esse País fora – ninguém sabe ao certo quantos. Poucos são os que, por medo, falam no assunto. E só a garantia de que os seus nomes seriam preservados – bem como o das entidades que os “empregam” – permitiu ao nosso jornal ouvir da boca de alguns deles esta triste e obscura realidade.
Comecemos pelo caso de Sara. Licenciada, foi chamada para fazer um estágio curricular num escritório situado em plena Avenida da Liberdade, no coração lisboeta. Ordenado: 150 euros. “Tenho que pagar renda e contas. Mas aceitei porque, quando fui chamada, vi na proposta a possibilidade de trabalhar na prática aquilo que estudei na Universidade”, conta-nos a jovem, natural do distrito de Leiria.
As funções executadas vão muito além das de um simples estagiário. Aliás, Sara executa as mesmas tarefas dos seus superiores hierárquicos. O horário é completo. Entenda-se: no mínimo, oito horas. “Muitas vezes temos que ficar mais horas para acabar o trabalho. Não nos pagam horas extraordinárias, dizem que depois podemos compensar… Mas a verdade é que, se chegamos mais tarde, chamam-nos à atenção. E na semana passada, quando acabei o trabalho e ia para sair à hora certa, perguntaram-me escandalizados se eu ia sair. Senti-me mal e inventei uma desculpa, disse que tinha uma consulta”, relata-nos a estagiária.
Mas fique o leitor a conhecer melhor o caso desta jovem profissional. É que os três meses contratuais já passaram. Prometeram-lhe um estágio profissional do IEFP – daqueles que o Governo apoia – mas como a aprovação atrasou, só no próximo mês irá começar. Ou seja, continua num estágio curricular que já deveria ter terminado.
Como se contorna a situação? Pede-se à Universidade para alargar o tempo do estágio. Ao ordenado acrescentaram-lhe 100 euros. Ainda assim, os 250 euros que passou a receber ficam bem abaixo do já de si minúsculo ordenado mínimo nacional.
“A Universidade não deveria ter aceitado”, lamenta a jovem. Sara reconhece que também não devia ter aceitado, “mas perdia a hipótese de fazer o estágio profissional”. Com o estágio profissional irá receber mais de 600 euros por mês. Mas, até lá, vai ter que se sujeitar ao vexame de trabalhar tanto quanto os chefes e receber menos da quinta parte dos seus ordenados.
300 euros com estágio do IEFP
A história de Sara até poderá parecer menos má, uma vez que, se tudo correr bem, vai conseguir um estágio profissional. São sacrifícios, dirão os portugueses.
Pois bem, olhemos então para o caso de Vera – também este, um nome fictício. A Ordem da sua profissão obriga a 12 meses de estágio após o curso para que possa exercer a profissão na sua plena capacidade. Ao todo, Vera já completou oito meses, mas nunca recebeu um ordenado. Apenas a promessa de um estágio profissional, que até deverá ser aprovado nas próximas semanas – depois de o Governo ter desbloqueado os incentivos.
Vera trabalha também numa das zonas mais conceituadas da capital portuguesa. Trabalha mais de 10 horas por dia, de segunda a sexta-feira. Às vezes acontece trabalhar ao fim-de-semana. “Trabalhamos todos por igual. Não há grande diferença por sermos estagiários. Eles até nos tratam bem e são simpáticos connosco. Mas isso não paga contas”, diz a jovem, natural do Norte do País.
A O DIABO conta que aceitou a proposta com o objectivo de vir a obter um estágio do IEFP. Mas o atraso fez com que estivesse até agora sem receber um tostão. “É a minha família que me suporta. Com esta idade, com um mestrado nas mãos, já não posso depender a 100% da minha família. Não tenho dinheiro meu. Tenho que pedir sempre. Custa”, explica, desanimada.
Mas se a situação é negra, pior ficou quando Vera soube que não poderia receber o dinheiro todo do IEFP. “Se quero fazer o estágio nesta empresa tenho de devolver à empresa o dinheiro que tiverem de pagar por mim. E do que sobrar tenho de pagar a segurança social. Fiz as contas, vou receber cerca de 300 euros”, revela.
Empresas recebem dinheiro de volta
O esquema não é novo. De facto, há cada vez mais situações destas. No papel, as empresas “pagam” um determinado valor ao estagiário – que até é obrigado a assinar um documento declarando ter recebido o dinheiro – mas, na verdade, a quantia acaba por ser devolvida à empresa. Ou seja, o estagiário só vai efectivamente receber o dinheiro que vem do Estado.
A pergunta feita pelo nosso jornal é directa: “porque aceita?”. A resposta é dada com os olhos no chão: “Eu só quero terminar os 12 meses de estágio, o que vai acontecer no fim do ano. O que significa que depois vou desistir do estágio profissional. Vou perder a oportunidade de fazer um estágio profissional a sério e vou perder dinheiro. Mas depois de me inscrever na Ordem quero começar a exercer plenamente. Em Portugal ou no estrangeiro. Estou a pensar em Londres”.
Tamanhas ilegalidades acabam por não vir a público. “Sei de outros casos como o meu. Não vou denunciar. Preciso do dinheiro. Preciso do estágio. E além do mais eu aceitei essas regras. Sei que não devia ser assim…”, afirma, envergonhada.
Os estágios do Instituto de Emprego e Formação Profissional são comparticipados pelo Estado e é o próprio IEFP que os supervisiona. A questão é que quantos mais jovens estiverem integrados nestes programas, menores são os números do desemprego. E toda a gente fecha os olhos. Além do mais, os meios para investigar são reduzidos e sem denúncia torna-se quase impossível mudar esta realidade.
Vera vai continuar até ao final do ano a sobreviver com 300 euros por mês. São mais 300 euros do que tem actualmente, apesar de trabalhar.
Casos são antigos
Estes casos não são novos, mas acentuaram-se com a crise. Inês foi convidada para fazer em 2010 um estágio profissional numa rádio regional no Interior do País. Na conversa que teve com o director da estação foi-lhe deixado claro: teria de devolver o valor que a empresa pagava. Nessa altura, já o Governo tinha mudado as regras do jogo. O pagamento aos estagiários tinha que ser processado por transferência bancária e o registo tinha que ser entregue ao IEFP. Mas vale de pouco, porque os estagiários levantam o montante e devolvem-no em dinheiro vivo.
Inês começou a trabalhar e a executar as funções que um qualquer jornalista sénior executava. Quando, ao fim de quatro meses, lhe apresentaram o valor que tinha de devolver, Inês recusou-se. Desistiu do estágio, alegando motivos pessoais, mas ficou com o dinheiro. “Quando aceitei, não tinha noção de que teria de devolver cerca de metade do valor total. Era um absurdo. Ridículo. Não devolvi e vim-me embora. Felizmente, o IEFP aceitou a minha justificação e pude fazer o estágio mais tarde”, conta-nos.
“A rádio tinha muitas dificuldades financeiras. Mas eu não tenho culpa disso. Os próprios jornalistas é que andavam na rua à procura de publicidade. Se eu trabalhava como todos, tinha que receber o meu ordenado. Se eu devolvesse a parte da empresa, o que acontecia é que o Estado estaria a pagar um funcionário a uma empresa privada”. Inês lamenta não ter tido “coragem” para denunciar a situação na altura própria. “O meio era pequeno e preferi vir embora a estar a abrir uma guerra que me poderia sair cara”, explica.
Grandes só contratam com incentivo
Vivemos a época dos estágios e dos incentivos. Por exemplo, o grupo Portucel Soporcel já fez saber que vai promover a realização de 77 estágios profissionalizantes a jovens no biénio 2014/2015, aumentando em 50% o número de vagas disponibilizado na edição anterior deste programa de ligação da escola ao mercado de trabalho, através do qual foram aceites 50 jovens na empresa no biénio 2013/2014.
Mas há mais incentivos. O Governo estimula a contratação de jovens à procura de primeiro emprego. Na prática, os desempregados mais velhos ficam fora das contas.
Isso mesmo nos deu a conhecer Vanessa. Aos 35 anos está desempregada, depois de ter trabalhado pela última vez em 2012 nos supermercados Continente. Regressou há dez anos a Portugal, depois de uma longa jornada pela Europa. Agora pondera novamente sair do País. “Não encontro emprego em lado nenhum. Voltei a tentar o Continente da cidade onde moro, mas agora não me aceitam porque só têm incentivos fiscais se empregarem pessoas que ainda não tenham trabalhado”, afirma.
Este é somente um dos exemplos do que se passa por este País fora. Mas não se esqueça o leitor de que o resultado líquido consolidado da Sonae – dona dos supermercados Continente – foi de 52 milhões de euros no primeiro semestre de 2014, o que compara com os 15 milhões registados em igual período do ano anterior. Resultado, também, dos incentivos do Estado.