Marcello, o Mestre da contradição

Com Salazar, apesar dele ou contra ele. Contra, quase sempre…

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HUGO NAVARRO

Trinta e quatro anos após a sua morte, Marcello Caetano volta a ser estudado como criador do Estado Social de que hoje tanto se fala. A propósito da publicação de um novo livro sobre o último Presidente do Conselho do regime deposto em 25 de Abril, O DIABO recorda a ascensão, glória e queda do sucessor de Salazar.

Só é possível “renovar na continuidade” pondo a tónica na renovação ou pondo-a na continuidade – isto é, traindo a renovação ou traindo a continuidade. E, no entanto, esta foi a divisa que Marcello José das Neves Alves Caetano escolheu para o seu percurso de homem público, desde que em 1927 desafiou os seus camaradas integralistas a aderirem à Ditadura até que, em 1974, viu ruir o edifício político de que fora um dos principais arquitectos.

Essa divisa impossível, por desafiar as leis da Física e a lógica das coisas, explica a ascensão paradoxal e a queda fatal de Marcello Caetano no Portugal do século XX. Um novo livro sobre o último Presidente do Conselho do antigo regime mostra-o claramente.

Luís Menezes Leitão, o autor desse trabalho há pouco publicado (ler recensão nas páginas seguintes), afirma que Marcello foi “o verdadeiro fundador do Estado Social em Portugal, cuja sustentabilidade está na ordem do dia”. Foi-o, é certo. Mas foi-o ainda para “renovar na continuidade” o Estado Novo que Salazar lhe deixara, sem querer, em 1968. Em Marcello Caetano/Um Destino, o autor chama à divisa impossível de Marcello “uma fórmula contraditória”.

Mas a verdade é que foi com ela que cresceu aos olhos de Salazar, com ela subiu os degraus do regime até ao topo, com ela se aproximou e se afastou desse regime até ele lhe cair nos braços, com ela governou finalmente e se afundou com a sua obra.

As origens de Marcello Caetano ajudam a explicar, parcialmente, a contradição que em si morou do princípio ao fim. Nascido numa família rural da Beira recentemente radicada em Lisboa, no bairro dos Anjos, Marcello foi educado no activismo católico que se politizou na República.

Tinha quatro anos quando caiu a Monarquia. Dez quando Portugal entrou na I Grande Guerra. Onze quando Sidónio tomou o poder e doze quando a balbúrdia regressou. Quinze quando a República matou o seu herói, Machado Santos. Vinte quando o Exército se sublevou em Braga, em 28 de Maio.

“Aceitamos”

Citadino de memória rústica, cresceu remediadamente à sombra de uma Igreja que fora poderosa e perdera a preponderância. De origem modesta, abriu os olhos no convívio com ricos e titulares.

Formado num meio de Direita, entregou-se a obras de solidariedade, aí ganhando preocupações sociais que nunca perderia. Com olhos de rapazinho viu nascer e morrer, ganhar e perder. Dir-se-ia que Marcello germinou na contradição, num território de transições de alto contraste.

Fez-se homem cedo, entrando na Universidade aos 16 anos e saindo licenciado aos 21 – num período em que nada era duradouro. Espírito aberto e indagador, moldou-se no nacionalismo. A tensão dos contrários foi o seu berço.

Marcello Caetano milita nas fileiras integralistas e monárquicas a partir do final da adolescência. São desse tempo algumas das suas páginas mais virulentas: ao longo da vida, inimigos à sua esquerda e à sua direita hão-de recordar-lhe o que escreveu na “Ordem Nova”, quando a única solução parecia o absoluto radicalismo dos extremos. Sobre o 28 de Maio, a sua palavra de ordem foi apenas: “Aceitamos”.

pag 11 foto 1Confessa-se então (tinha 20 anos) “tudo o que há de mais reaccionário”. Mas o contraditório brota nele como coisa natural: adere à Ditadura em Setembro de 1927 e logo defende que os nacionalistas devem apoiá-la, suspendendo as velhas querelas divisionistas, nomeadamente entre monárquicos e republicanos.

Terminara então a sua licenciatura e preparava-se, num obscuro cargo burocrático em Óbidos, para enfrentar os trabalhos de doutoramento. Não passava ainda de um brilhante aluno com aspirações ao professorado; ideologicamente, o seu ajustamento estava em curso.

É, por isso, historicamente incorrecto afirmar que o molde ideológico de Marcello tinha as formas exclusivas do Integralismo Lusitano ou do monarquismo: na aurora da Ditadura, era um jovem irreverente de Direita que ainda não encontrara o seu caminho. Em termos políticos sólidos, não existe Marcello Caetano antes do seu encontro com António de Oliveira Salazar.

Doutrinador

Marcello Caetano começa a aproximar-se de Salazar em Julho de 1929 e inicia a sua colaboração como auditor jurídico do então Ministro das Finanças em Novembro do mesmo ano, pela mão de Pedro Teotónio Pereira, amigo comum. Marcello tem 23 anos, Salazar já vai nos 40.

Desde os primeiros contactos, o jovem formado no raciocínio positivo do Direito detecta na Ditadura uma falha intrínseca: a ausência de fundamentação teórica. E é esse o campo de acção que escolhe para si e para o seu futuro. Seria, para todos os efeitos, um doutrinador.

Salazar era, sem dúvida, um pensador de fôlego, mas o seu pensamento fora construído nas polémicas da viragem do século XIX para o século XX e posteriormente influenciado pelo pensamento contra-revolucionário francês; a sua especialização académica, na área das Finanças e da Economia, ainda mais contribuíra para que se contentasse, em termos de uso político, com uma breve vulgata teórica – a única que a memória curta dos homens retém.

Os seus grandes princípios orientadores são, ideologicamente, os dos nacionalistas católicos do seu tempo de juventude; social e politicamente, os de Maurras; mas na Economia nunca sentiu necessidade de grandes elaborações, condensando as suas conclusões na alegoria da dona-de-casa de boas contas. A linha que traçou era clara e firme, mas nunca tentou proceder à sua fundamentação exaustiva.

Nunca escreveu um livro para além dos textos académicos ou das recolhas de imprensa. E nos seus volumes de Discursos sobressai um teorizador casuístico, ligado aos temas do seu tempo e alheio a elucubrações abstractas.

Contra Salazar

Já Marcello, civilista criado na República, mente moldada na novíssima Faculdade de Direito de Lisboa, sentiu a necessidade de chamar a si (já que ninguém mais o fazia) a incumbência de explicar o regime, fundamentá-lo na Ciência Jurídica e ensiná-lo com rigor, método e paciência. Fá-lo-á, desde logo, em relação ao Acto Colonial de 1930, à Constituição de 1933 e ao sistema corporativo. Em termos teóricos, Marcello Caetano será o “carro-vassoura” do salazarismo: viria atrás, esclarecendo, arregimentando, convencendo, fazendo doutrina – enquanto Salazar, uma vez traçado o rumo, se preocupava sobretudo com a execução.

Enquanto Marcello crescia na guerrilha de Lisboa, nos comícios e nas rusgas às livrarias, no confronto ideológico entre universitários de Direita e de Esquerda, Salazar, jovem lente em Coimbra, ultrapassara já com superioridade as guerras com o jacobinismo democrático e aprendera a fazer os jogos de cintura do mundo adulto, como exemplarmente demonstrou na resposta ao processo sobre o seu pretenso monarquismo (ambiguidade que haveria, aliás, de manter ao longo da vida).

pag 14 foto 2O equívoco de considerar que um doutrinador e teórico como Marcello estaria destinado a suceder a um sábio homem de acção como Salazar foi responsável, em última análise, pela desgraça pública de Caetano e pela contradição final, em 1974.

Assim, o grande problema de Marcello Caetano foi ter sido o teórico de um regime que não podia dispensá-lo mas não sabia como usá-lo. Sendo, assim, um homem sem lugar exacto no Estado Novo, chegou finalmente ao poder pela negativa, por “não haver alternativa”.

Era, por então, um intelectual embrenhado no seu labirinto, e não um político. Cumprira-se a sua sina: defender o edifício teórico regime – com Salazar, apesar de Salazar ou contra Salazar. Contra, quase sempre.

Arauto do Império Colonial, defendeu a autonomia ultramarina desde os anos 40. Esteio da Ditadura, imaginou a sua liberalização. Emblema de uma Primavera, convocou as borrascas do Inverno do regime.

Salazarista de sempre, teve em Salazar a sua “alma negra”. Terminou só e incompreendido, na terra de ninguém que escolhera como destino aos 23 anos: a conciliação impossível dos contrários.

Salazar e Marcello, o gato e o rato do Estado Novo

Licenciado em Direito aos 21 anos, com a classificação de “Muito Bom com distinção”, Marcello Caetano é contratado dois anos mais tarde, em Novembro de 1929, como auditor jurídico do Ministro das Finanças, António de Oliveira Salazar. Inicia-se então uma relação pessoal e política de três décadas entre os dois homens, encerrada quando Marcello, cansado de desempenhar invariavelmente o papel de “elo mais fraco”, se despede da vida política para se dedicar ao cargo de Reitor da Universidade de Lisboa, em 1959. Essas três décadas, período-charneira do Estado Novo, assistirão ao desfile ininterrupto de cenas de amor-ódio entre Marcello e Salazar que reflectem, como num jogo entre o gato e o rato, uma turbulenta conjugalidade política.

Marcello Caetano era um jovem sensível. Salazar, na intimidade, chamava-lhe “um vidrinho” – no qual não se podia tocar sem risco de desintegração. Amuos, ciúmes, despeitos, vinganças e reconciliações marcam a relação sentimental de Marcello com o regime e com o seu chefe. O rol de queixas é infindável.

Logo em 1931, após ter obtido o doutoramento perante um júri hostil (e essa hostilidade devia-se, sem dúvida, à sua relação de proximidade com Salazar), Caetano lastima: “Quando esperava uma palavra amiga de felicitações, recebi um bilhete bastante seco de agradecimento pela oferta da dissertação com cumprimentos para o novo Doutor”.

Em 1933, um artigo publicado por Marcello na imprensa deixa Salazar desagradado – e o assessor do já Presidente do Conselho apressa-se a pedir uma audiência para confessar que no artigo em questão “há mágoa”.

nova foto 001No mesmo ano, encarregado de organizar o primeiro Congresso da União Nacional, Marcello esmera-se num plano minucioso mas desespera por uma audiência que nunca mais é concedida e acaba por bater com a porta: “Houve um arrufo entre nós”. Segundo Manuel Maria Múrias, Caetano “manifestava nervosamente a sensibilidade de uma prima-dona”.

Em 1934-35, Marcello colabora activamente na redacção do Código Administrativo, mas sente que o Presidente do Conselho não dá valor ao seu esforço (foi “a época de maior frieza nas minhas relações com Salazar”). Na síntese de Menezes Leitão, “Salazar retribuía a audácia” de Marcello mantendo-o “na posição subalterna de mero colaborador”.

Jovens quadros

Mas Salazar sabia que não podia manter indefinidamente no limbo um colaborador da craveira de Marcello Caetano. Depois de este ter chamado a si a defesa e fundamentação do Acto Colonial, Salazar abre-lhe uma carreira específica que há-de marcar o percurso político de Caetano. Nomeado director cultural de um cruzeiro estudantil de férias pelas colónias, Marcello visita em 1935 a África portuguesa e fica cativo.

Cooptado no ano seguinte para vogal do Conselho do Império (ao mesmo tempo que aceitava o lugar de procurador à Câmara Corporativa e um cargo de direcção no Instituto de Alta Cultura), fica-lhe claramente no horizonte o Ministério das Colónias, que acabará por assumir nove anos mais tarde, em 1944.

Entretanto, em 1938, uma viagem de estudo a Itália afasta Marcello do Fascismo, que classifica de “teatral”. Há-de ser visto, fardado de Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa (cargo que exerceu entre 1940 e 1944) e fazendo a saudação romana por dever de ofício, mas o seu coração já se rendera à “superioridade da nossa fórmula”.

É no seu período à frente da Mocidade Portuguesa que Marcello, continuando a leccionar na Faculdade de Direito, inicia a captação de jovens quadros que hão-de segui-lo ao longo dos anos e acabarão, em grande parte, por constituir a falange marcelista que o acompanhará no poder entre 1968 e 1974: Baltazar Rebelo de Sousa, Silva Cunha, Afonso Marchueta, Camilo de Mendonça, Álvaro Roquete, Veiga Simão, Veiga de Macedo, José Paulo Rodrigues, entre outros.

“Ala reformista”

É também neste período que Marcello inicia um longo e incansável bombardeio epistolar a Salazar, a quem envia críticas, observações, sugestões, desabafos, por vezes reprimendas e impertinências, às quais o primeiro-ministro por vezes nem responde. Em Fevereiro de 1944, pisa o risco: escreve a Salazar reclamando uma “urgente e indispensável” remodelação governamental e considerando “francamente condenável” a forma pouco colegial da governação de Salazar. Este, para calá-lo, convida-o para Ministro das Colónias. E Marcello Caetano aceita.

Marcello já fora sondado, em 1940, para Governador-Geral de Moçambique, ou em alternativa Secretário de Estado das Colónias, mas achara-se apoucado. Agora, com a pasta à sua disposição, entrega-se de alma e coração ao “desígnio imperial”, sem deixar de sublinhar a Salazar, no acto de aceitação: “Mas olhe que eu sou um partidário convicto da autonomia das colónias”… O aparente paradoxo, cuja elucidação não cabe nestas páginas, radica no velho conflito entre partidários da autonomia num quadro imperial, à maneira inglesa (tese de Marcello, Sarmento Rodrigues e outros), e os partidários da “integração” e da “assimilação” ultramarina.

Os primeiros virão, trinta anos mais tarde, a admitir que as colónias só podem conservar-se “enquanto for possível”; os segundos, constituindo a “linha dura” em torno do Presidente Américo Thomaz, considerarão “indiscutível” a manutenção de Portugal no Ultramar. Ambos saíram frustrados em 25 de Abril de 1974. E ainda hoje “marcelistas” e “salazaristas” se acusam mutuamente.

Mas nem com o cargo de ministro Marcello se sente aquietado. Continua a chagar Salazar com longas cartas, a beliscá-lo em entrevistas, a afrontá-lo directamente, como sucedeu num tempestuoso Conselho de Ministros, em Dezembro de 1945. Mais cartas. Mais mágoas. Mais reconciliações. Por fim, em 1947, Salazar perde a paciência e dispensa Marcello, que por então se assumia já como líder da “ala reformista” do Estado Novo, em confronto permanente com a “ala militar” liderada por Santos Costa.