Marcello, o Mestre da contradição

Com Salazar, apesar dele ou contra ele. Contra, quase sempre…

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“Ninguém é eterno”

Convenientemente arrumado na prateleira de presidente da Comissão Executiva da União Nacional entre 1947 e 1949, Marcello envolve-se agora em guerras com vários membros do Governo, em especial o Ministro da Educação, Fernando Pires de Lima, ao mesmo tempo que tenta criar uma Acção Popular que atraia jovens à União Nacional. Salazar pressente o perigo e impede que este embrião de partido alternativo vingue.

Sentindo-se mais uma vez “desconsiderado”, Caetano cria um novo facto político: propõe em público que o Presidente do Conselho seja o “candidato natural” do regime nas eleições presidenciais de 1948. Rubro de indignação por quererem “pontapeá-lo para cima”, Salazar faz reeleger Carmona e regista a afirmação de Marcello: “Ninguém é eterno”…

Caetano afirmava-se já, no final da década de 40, como o mais provável sucessor de Salazar – pela sua preparação teórica, pela sua desenvoltura, pelo atrevimento com que desafia o chefe. Vai deixando as suas mensagens para memória futura (“não acredito que a política de repressão e repulsão seja fecunda”…).

O tom sobe até se tornar insuportável para o Presidente do Conselho, que em 1949 tira da gaveta o pedido de demissão que Marcello lhe enviara dois anos antes. E aplica ao discípulo o remédio que este queria destinar-lhe: pontapeia-o para cima, aprisionando-o no cargo (prestigioso mas politicamente irrelevante) de presidente da Câmara Corporativa.

Até 1955, Marcello Caetano manter-se-á refém do seu posto de quarta figura do Protocolo do Estado, que o impede de actuar publicamente fora de limites estritos. Ainda assim, nos gabinetes e nos bastidores, insurge-se contra a indolência dos salazaristas que não conseguem levantar o edifício do corporativismo; pronuncia-se contra a transformação cosmética das colónias em províncias ultramarinas (uma “ficção jurídica”) e o abandono do antigo conceito de Império com autonomias; incompatibiliza-se com os monárquicos, que pretendem aproveitar o falecimento do Presidente Carmona, em 1951, para restaurar a Monarquia por decreto; volta a lembrar que “Salazar não é imortal” e deve, por isso, ao fim de “tantos anos” no poder, promover a sua substituição por “um homem comum, ainda que experiente, sabedor e devotado ao bem público” (adivinhe-se quem…).

Em 1955, Salazar rende-se finalmente ao conselho de Sun Tzu, filósofo e estratega do século V antes de Cristo: “mantém os amigos perto de ti, e os inimigos mais perto ainda”. E Caetano é nomeado para o último cargo político relevante que há-de exercer no salazarismo: Ministro da Presidência, braço direito do Presidente do Conselho.

O gato caçou o rato. Mas ainda não o papou…

Acto final: da Primavera ao Inverno

Ao assumir o cargo de Ministro da Presidência, em 1955, Marcello Caetano posiciona-se publicamente como potencial sucessor de Salazar. Mas o presente vem envenenado: como braço direito de Salazar, não poderá dispor das liberdades com que até então vinha infernizando o Presidente do Conselho.

A indigitação fora sugerida pelo General Craveiro Lopes, que entretanto substituíra Carmona em Belém e era geralmente tido como próximo do círculo “reformador”. Numa audiência de rotina, Craveiro tem a ingenuidade de se referir a Marcello: “Este é o melhor de todos. Este é que convinha que estivesse junto do senhor Presidente para recolher os seus ensinamentos!”.

salazar2012Salazar, olhando por cima dos óculos de ler, perguntou matreiramente: “Seria então o delfim?”. E o Presidente da República, caindo na esparrela, pergunta de volta: “E porque não?”. Salazar confirmou, assim, pela melhor fonte, que a facção “reformadora” do regime, tendo conquistado a Presidência da República, se preparava agora para conquistar a Presidência do Conselho de Ministros. O destino de Craveiro Lopes fica traçado: não voltará a ser candidato presidencial da União Nacional. O de Marcello fica suspenso: esta é a sua derradeira oportunidade.

Mas Marcello sente que pode ainda arriscar. Ao longo de um quarto de século de colaboração com Salazar, tornara-se o teórico oficioso do Estado Novo e dera ao regime uma doutrina jurídica e política, divulgada em incontáveis livros, monografias e estudos. Estivera presente na concepção e redacção dos pilares legislativos do salazarismo. Vira-se desde muito novo em cargos de alto prestígio e ousara marcar o seu percurso com um distanciamento que lhe dava uma aura de independência.

Teria chegado a sua hora?

“Reputação de esquerda”

Sete peões “reformistas”, todos dedicados a Marcello, entraram entretanto para o Governo: Camilo de Mendonça, Paulo Cunha, Raul Ventura, Trigo de Negreiros, Ulisses Cortês, José Guilherme de Melo e Castro, Rebelo de Sousa.

Na barricada oposta, carregavam armas Santos Costa, Américo Thomaz (então ainda Ministro da Marinha), Antunes Varela, Correia de Oliveira e Pinto Barbosa. Mas a confiança torna Marcello imprudente: visita indiscretamente Craveiro Lopes em Belém, incompatibiliza-se definitivamente com os monárquicos e os “ultras” da “linha dura”, torna-se perigosamente popular ao patrocinar a fundação da RTP e ao tornar-se o primeiro governante a aparecer nos pequenos ecrãs.

Em 1957, Salazar avisa-o uma última vez: “Não vejo vantagem em que se consolide essa sua reputação de esquerda…”.

Em 1958, Craveiro Lopes deixa-se de novo apanhar numa ratoeira e dá a entender aproximar-se o momento de substituir Salazar. Com esta ingenuidade, expõe toda a equipa “reformista” de Caetano e perde definitivamente a nomeação como candidato presidencial, que recai em Thomaz.

Marcello amua, mas ainda está presente durante a campanha eleitoral em que Humberto Delgado abana os pilares do regime, sem contudo lograr derrubá-los. Em 1959, finalmente, Salazar desiste de Marcello José das Neves Alves Caetano. E confessa-lhe com estudada frieza: “Não posso ter amigos, não sou amigo de ninguém”. Dos “reformistas”, só Leite Pinto e Rebelo de Sousa conseguirão manter-se no Governo. E Marcello desabafa: “Servi fielmente o Estado durante trinta anos. Até ao dia em que percebi que o Doutor Salazar não queria instaurar um regime, mas sustentar um equívoco que lhe permitisse governar, dividindo”.

Travessia do deserto

Exonerado do Governo, Marcello demite-se de todos os cargos políticos, incluindo o de Conselheiro de Estado, que só voltará a exercer nove anos depois, quando o Presidente Thomaz for obrigado a substituir na Presidência do Conselho um Salazar em perigo de vida.

Tem agora à sua frente a travessia de um vasto deserto. Regressa com afinco às suas funções universitárias, começa a reunir o “grupo reformista” em tardes de cavaqueira no restaurante Choupana, na Marginal, e já nem sequer se incomoda quando percebe que o seu telefone está sob escuta policial. Sabe que terá de esperar pelo seu dia.

Tem 53 anos, Salazar completou 70. O Presidente do Conselho continua a chamá-lo, de tempos a tempos, pedindo-lhe opiniões. Mas Marcello desligou-se do regime, num distanciamento que os seus arqui-inimigos interpretam como mais uma manobra para se posicionar a jeito para o Dia D.

Assume então o cargo de Reitor da Universidade de Lisboa, onde se torna popular entre alunos e professores. Não é já o “Abominável Homem das Neves Alves Caetano” que fazia tremer os alunos nas provas finais: é o Magnífico Reitor que ouve e decide em serenidade majestática.

As fotos deste período mostram-no invariavelmente com um sorriso tranquilo de homem apaziguado. Furta-se a actos públicos e ao contacto com a política. Envolve-se à distância no fracassado e ingénuo golpe do General Botelho Moniz, em 1961, sem ser maculado.

Num último conflito com o regime, incompatibiliza-se com o Governo a propósito das comemorações do Dia do Estudante, em 1962. Demite-se do cargo de Reitor e fica, sem um queixume, regendo apenas as suas Cátedras na Faculdade de Direito.

Tem ainda um assomo de irrequietude, em Outubro de 1962, ao ver debatida no Conselho Ultramarino uma sua proposta para a reorganização das colónias: sugere então uma Federação de Estados, à maneira da Commonwealth britânica, com Angola e Moçambique em pé de igualdade com a Metrópole. A proposta não passa, naturalmente, mas Marcello tampouco se agasta. Aprendeu a esperar.

Estado Social

Em Setembro de 1968, o telefone toca na residência do pacato Professor na Rua Duarte Lobo, de quem muitos portugueses já nem se lembram: Salazar encontra-se entre a vida e a morte no Hospital da Cruz Vermelha, dificilmente sobreviverá em termos de voltar a governar.

Está convocado o Conselho de Estado, para aconselhar o Presidente Thomaz a decidir – e Marcello, pela primeira vez em nove anos, comparece. Surge ainda na Cruz Vermelha, a marcar presença na morte anunciada do insigne ancião. Para onde se volta, Thomaz só ouve um nome como conselho: “Marcello”.

Em 27 de Setembro de 1968, Marcello Caetano toma posse como Presidente do Conselho de Ministros. Ganhara a partida. Mal sabia então que a contradição e o paradoxo, que manuseara com mestria ao longo de toda a vida, iriam agora voltar-se contra si. Fomentará a economia e aproximará Portugal da Europa desenvolvida.

Criará um sistema de apoio social que é hoje considerado o embrião do Estado Social que conhecemos. Prometerá uma Primavera e tentará escapar às tempestades do Inverno.

Mas, menos de seis anos depois, estará a caminho do amargo exílio – sem ter conseguido “renovar na continuidade” o regime de que fora um dos principais arquitectos e que ruía consigo, perante uma multidão ululante de ódio e cegueira, no Largo do Carmo, no dia 25 de Abril.