Do suicídio da nossa cultura e ciência

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[avatar user=”epifanio14″ size=”thumbnail” align=”left” /]Não tão evidente quanto a ocupação política e económica de Portugal nas últimas décadas, a ocupação da nossa cultura e ciência não tem sido, ainda assim, menos vigorosa. Se em troca dos famosos fundos europeus aceitámos destroçar grande parte da nossa agricultura, das nossas pescas e da nossa indústria, apenas para dar três exemplos, o panorama da nossa cultura e ciência não é menos desolador.

Tem-se falado ultimamente mais sobre isso, a respeito das avaliações internacionais dos nossos centros de investigação, mas quase sempre sob um olhar enviesado – na maior parte dos casos, contesta-se o corte no financiamento mas não os critérios que determinam esse mesmo financiamento.

E que critérios são esses? No essencial, as avaliações internacionais dos nossos centros de investigação valorizam o nosso “grau de internacionalização”. Até aqui tudo bem – dirão os mais ingénuos. O problema é que essa valorização é igualmente enviesada. A cooperação com centros de investigação do Brasil, ou mesmo da restante América Latina, por exemplo, não é minimamente valorizada. Na verdade, o único factor que realmente se valoriza é a produção científica em língua inglesa.

Não é pois por acaso que, em Portugal, há já Universidades que leccionam cursos em inglês, bem como revistas que só publicam textos redigidos nessa língua. Em nome de um financiamento cada vez mais exíguo, também aqui abdicámos de afirmar a nossa soberania, a nossa autonomia. Como se esta não se afirmasse também, senão sobretudo, na área da cultura e da ciência. Pois como pode continuar a afirmar-se como soberano um povo que abdica de pensar e de escrever na sua própria língua?

No caso da Filosofia, que conheço melhor, o caso assume contornos ainda mais graves, pois que quase toda a produção filosófica anglófona tende a inscrever-se no que em geral se designa por “filosofia analítica” – uma tradição bem diferente da chamada “filosofia europeia continental”, onde a tradição filosófica portuguesa se insere.

Quem já fez a experiência de escrever filosoficamente em inglês, sabe bem do que falo – nalguns casos, nem sequer há vocábulos para expressar certas diferenças conceptuais. Porque, de facto, uma língua não é apenas um instrumento de comunicação. Ela afecta a própria forma como o pensamento se estrutura internamente.

Também nesta frente, Portugal está hoje num beco sem saída. Quando a nossa política deveria passar por estabelecer parcerias preferenciais com instituições universitárias do espaço lusófono – para assim afirmar cada vez mais a língua portuguesa à escala global – aceitamos ser avaliados por critérios que nos afastam desse caminho.

Que, da esquerda à direita, não haja nenhum partido com representação parlamentar que denuncie este suicídio cultural e científico, isso já nem sequer nos surpreende. Na verdade, e isso é o que mais custa, este suicídio cultural e científico foi propiciado por muitos de nós. Por isso se trata de um suicídio.