Consequências imprevisíveis

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[avatar user=”serrao14″ size=”thumbnail” align=”left” /]A detenção de José Sócrates é um assunto político incontornável e de consequências imprevisíveis para o regime e para a nossa democracia.

Não comento, porque não devo e não conheço, os aspectos jurídicos que a determinaram, bem como não comento a forma e o modo como a detenção ocorreu, porque desconheço as razões que determinaram o modus operandi das autoridades judiciais. A seu tempo saberemos…

A primeira nota que importa tecer é acerca do presente e do futuro de Sócrates. E neste particular, salvo qualquer facto novo ou um grosseiro erro judicial, a carreira e a ambição política de Sócrates chegou ao fim. Com o fim de Sócrates é posta em causa a estratégia de António Costa de ressuscitar o seu nome e a sua figura, visando colher junto dos apaniguados do ex-líder os apoios e as motivações que o guindaram à liderança do PS e com que o fazem sonhar com a governação do país.

E é sobre o PS que recai a segunda nota. Costa foi colega de governo de Sócrates e seu número dois no governo de maioria absoluta socialista. A detenção de Sócrates lança um anátema sobre as governações socialistas e cria no espírito dos eleitores uma natural dúvida sobre as propostas e promessas socialistas assentes, como até hoje, na premissa de que “connosco é diferente” e, mais ainda, sobre os homens que hoje encarnam a proposta de mudança mas são os mesmos que estiveram com Sócrates e com ele estiveram até hoje.

Uma terceira nota sobre as reacções à detenção. Edite Estrela e muitos outros socialistas preferiram, ao inteligente silêncio e às sábias palavras de António Costa, invocar a teoria da agenda escondida das autoridades judiciais e ignorar a gravidade objectiva dos indícios criminais imputados a Sócrates.

Esta negação da realidade em nada contribui para a credibilização do regime e muito menos para recuperar a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Mais, esta reacção sobre um dos seus, em clara contradição com a ligeireza com que se comentam casos de terceiros, de outras cores e famílias políticas, é uma demonstração evidente de que a igualdade republicana ainda é meramente formal e está bem longe de ser material e efectiva.

Uma quarta nota é necessariamente sobre o papel da comunicação social e a forma como exerce o seu direito de informar. Alguns dos media, ignorando por completo o princípio constitucional da presunção da inocência, acusam, julgam e condenam de imediato todo e qualquer arguido, detido ou não, revelando, sabe-se lá como, matérias sobre o próprio e sobre tudo o que gravita à volta dele, deixando no ar a ideia de que as pessoas visadas contaminaram tudo e todos, e que todos os que se aproximaram, por amizade ou por meras relações profissionais ou sociais, são também elas indiciadas, acusadas e… quem sabe, co-autoras.

Acresce, ainda, que fica sempre no ar a ideia de que o segredo de justiça é violado, pois esses mesmo media revelam factos, às vezes documentos, às vezes até informações sobre o que ocorreu nos interrogatórios, tantas e tantas vezes não se coibindo de humilhar os visados… etc.

Urge rever profundamente estes comportamentos noticiosos. Todos, arguidos ou não, têm o direito ao bom nome, à sua boa imagem e à presunção da sua inocência até trânsito em julgado de uma eventual sentença condenatória. O direito/dever de informar jamais pode pôr em causa outros direitos constitucionais, nomeadamente os de natureza pessoal.

A qualidade da nossa democracia também se reflecte nos comportamentos dos agentes políticos e dos que têm o dever de informar. Ninguém pode ser dispensado deste escrupuloso dever de respeito. Hoje pelos outros, amanhã por nós.

Não fui nem sou um apoiante de Sócrates. Mas sei distinguir o político do cidadão. O político foi julgado pelos seus pares nas últimas eleições. O cidadão, hoje arguido – ao que sei à hora que escrevo –, merece-me todo o respeito e tem o direito ao seu bom nome e à sua defesa em condições dignas, e, até que um Tribunal o condene e a sentença transite em julgado, é inocente.

Não sendo assim, o regime faliu, a democracia está doente, a constituição uma letra morta, e a cidadania, que tantos invocam na retórica dos discursos, apenas uma lembrança esfumada mas não integrada nos valores da república.