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Deu-me outra vez um daqueles ataques súbitos de abeirar-me da janela e namorar o sol – talvez por me desconfortar tanto a cinza fria com que estes dias andam salpicados e ter de correr o cortinado pretensioso dos pequenos atilhos e dos pequenos cadilhos que me emperram os momentos. Abro mesmo a janela de par em par e faço do meu sol um braseiro manso.
Pois, já percebeste: claro que é outra carta para ti, outra das muitas que revelo sem revelar, sabendo sempre que tu sabes que são cartas para ti. No outro dia, uma amiga perguntou-me se existias. Eu ri-me (como tu sabes que eu sei rir) e disse-lhe, sem mentir, que não, que te inventava como invento quase tudo para poder lidar com a realidade.
Só que tu sabes como não invento nada e como tudo o que aparentemente ficciono é a realidade dos meus dias e como tudo o que aparentemente se mostra como factual não passa de um aparte onde, à parte, desaguo de quando em quando.
Apesar de todas as nossas idiossincrasias fóbicas, escrever-te estas cartas e publicá-las é algo absolutamente delicioso. Gosto que te imaginem de panamá e casaco de linho cor de grão, que a estridência dos tweeds sempre me causa um recuo óptico.
Também não posso referir-me a óculos nem a bolsos assoberbados porque, mesmo que fossem verdade, jamais os reconhecerias como teus. Adoro escrever-te desta forma descarada, sim, e chamar-te de Persa e de milhentos outros nomes, apesar de ser esse o que se me afigura mais correcto, mais luminoso, mais real.
Gosto de cantar-te. E cantar-te assim, à beira do enigma (chapinhando cânticos de sama e muita noite e sentir-te ouvir-me, mesmo naqueles silêncios em que danço, danço, danço só para ti), é a consumação de um entendimento que é só nosso, de um amor em vertigem sem queda, porque sei que me és consolação.
Sigo pela vida, como tu sabes, com a minha rosa etérea nos cabelos e com este corpo a crer-se renascido e com esta alma velha, velha, só porque o teu amor me ensandece de amor por ti. E quando, logo, disseres que me leste, eu responderei, distraída, “O quê?” e será a vez de os berlindes, no céu, dançarem para nós.
Para já, por agora, fico-me com este sabor morno e redondo na alma, esqueço atilhos e cadilhos e acendo uma grinalda pela casa toda.