Revisitando Vermeer

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1945

 Luísa Venturini

Há muito tempo que não entro num quadro de Vermeer. Há muito tempo que não me sento àquela janela de luz matinal que, do lado esquerdo, tantas vezes lhe ilumina a sala, a tela, a personagem. Tenho sempre a sensação de que me invade um suave cheiro a cera, a sabão azul e a tintas de óleo. Algo assim como o perfume natural daquela casa. Às vezes, vindo não sei de que jarrão adormecido sobre uma mesa próxima, chega o aroma de um ramo de rosas, ou, então, será alguma rapariga, com ou sem brincos, que passa no corredor. Sou capaz de ficar horas ali sentada à janela, fascinada com o que poderei encontrar naquela sala.

Cada carta, cada rolo, cada manuscrito parece encerrar segredos pangeicos, apenas sussurrados àquele Mestre, como paga pelo seu afinco. Fico a assistir ao seu estudo, aos movimentos amplos de pássaro sobre a mesa de trabalho, a pressentir os seus “eurekas” íntimos no fulgor da descoberta que algo ritmadamente lhe assoma aos olhos. É quase como se assistisse ao crepitar de uma fogueira de cintilações matemáticas e fagulhas angulares. O restolhar dos rolos e das cartas, a vibração metálica dos instrumentos que se roçam num gesto mais entusiástico subvertem aquele falso silêncio, onde impera a vozearia dos seus cômputos e raciocínios. Comparo, sem pretendê-lo, a alegria barroca daquela sala de luz macia com a atmosfera macilenta do scriptorium medievo onde só o ouro das iluminuras nos fala dos júbilos intimistas do monge, reverberando o valor da sua aprendizagem.

(Como não recordar a Biblioteca de Borges, com os seus favos aparentemente perfeitos a servir de capa a todos os seus possíveis périplos labirínticos? Como não evocar o fascínio de Avicena ao entrar pela primeira vez na Biblioteca de Bukhara, “Vi livros de cuja existência poucos sabiam e que eu nunca vira até àquele momento, nem voltei a ver desde então…”.)

Sob a luz e contraluz de todos os tempos, aqui me encontro em silêncio à janela da sala de Vermeer, clandestina como traça borboleteando chama, fazendo do geógrafo alguém da minha própria casa. Imagino-lhe a testa alta, o nariz grego, as orelhas bem desenhadas, o queixo arredondado, a arcada das sobrancelhas sobre dois olhos muito escuros e vivos emoldurados por olheiras arroxeadas pelos afãs do espírito. Oiço-lhe a voz baixa e grave de quem passa tempo a fio em diálogos de mente e pressinto o ar distraído com que parte o pão à mesa do jantar e o ar regalado com que desfruta devagar o seu copo de vinho, incapaz de, por instantes, perceber os chorrilhos contentes da mulher que saracoteia à sua volta com uma malga de sopa quente ou uma terrina de guisado fumegante. Vejo-o predisposto a viagens homéricas até outras Salamancas e outras Toledos para mergulhar no espólio dos antigos e debater com contemporâneos os acervos das ideias, na febril conquista de um pouco mais.

Com relutância, saio da janela do geógrafo. A Senhora de Chapéu Vermelho acaba de chamar-me.