Sim, José Rodrigues dos Santos (não) tem razão

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RENATO EPIFÂNIO

Comecemos por responder ao repto de José Rodrigues dos Santos: “Se acham que o fascismo não tem origens marxistas, façam o favor de desmentir as provas que apresento nos dois romances. E, já agora, aproveitem também para desmentir que o fascismo alemão se designava nacional-socialismo. Como acham que a palavra socialismo foi ali parar? Por acaso?” (in “O fascismo tem origem no marxismo”, PÚBLICO, 31.05.2016).

Não, não foi por acaso, nem sequer de forma ilegítima, dado que o fascismo foi, a seu modo, uma variante do socialismo – um “socialismo de direita” –, por muito que isso incomode os auto-proclamados socialistas de hoje – em geral, de “esquerda” (terminologia mais do que equívoca, como aqui sobejamente se verá, para escândalo das mentes mais formatadas pelo “politicamente correcto”).

Dito isto, José Rodrigues dos Santos não tem razão na sua tese (algo provocatória, reconheça-se) de que “o fascismo tem origem no marxismo”. Já teria mais razão se defendesse que o fascismo e o comunismo têm, em parte, origens comuns, sendo que, para tal, teria de recuar muito mais na história. Recuemos nós a Platão (século V a.C.) e à sua “República” e perguntemos: a utopia platónica era mais proto-fascista ou mais proto-comunista?

A resposta não é óbvia: pela minha parte, já vi tanto fascistas como comunistas reconhecerem-se nela. E o que os une, nesse reconhecimento? Desde logo, em termos de ontologia política, a prevalência do uno sobre o múltiplo, ou, se preferirem, da Comunidade sobre o(s) Indivíduo(s). Essa é a subtil, a abissal fronteira do fascismo e do comunismo face ao liberalismo – como já foi mil e uma vezes defendido (sendo, a esse respeito, o livro de Karl Popper, “A sociedade aberta e os inimigos”, a grande obra de referência – e, não por acaso, Popper começa também pela “República” de Platão).

Defendendo ambos esse “mesmo”, o fascismo e o comunismo separaram-se depois, historicamente, em tudo o resto – na aceitação do capitalismo (que o comunismo rejeita por completo e o fascismo apenas em parte) e, sobretudo, na promoção do internacionalismo e da igualdade social. Sendo que aqui há também variantes: se o fascismo sempre afirmou uma hierarquia social, essa hierarquia não estava necessariamente fundada num racismo biológico, mas antes no que alguns autores (como, entre nós, Fernando Pessoa) designaram de “racismo espiritual”.

A referência à história é aqui fundamental. Ente os anos 20 e 40, o fascismo foi apoiado ou, pelo menos, tolerado por diversas outras correntes de direita (algumas até liberais; na teoria, anti-fascistas) porque, para estas, o fascismo pareceu ser o grande foco de resistência (e, por isso, um mal menor) ao avanço, aparentemente crescente, do comunismo.

Isso levou a que o fascismo acentuasse a sua dimensão anti-comunista, que não anti-comunitarista, bem como a outros desvios em relação às suas teses de raiz – sendo talvez o exemplo maior a sua relação com o cristianismo: em tese, o fascismo tende a ser anti-cristão (pelo seu anti-igualitarismo, desde logo); na prática, como sabemos, houve, nalguns casos, uma aproximação mútua, por mais que, em tese, o cristianismo esteja bem mais próximo do comunismo do que do fascismo (não é por acaso que muita gente, ainda hoje, e com bons argumentos, considera o comunismo como uma versão ateia do cristianismo).

Se assim não tivesse acontecido, talvez José Rodrigues dos Santos tivesse bem mais razão. Entre nós, por exemplo, Raul Leal, companheiro de Fernando Pessoa na revista “Orpheu”, defendeu expressamente uma síntese do comunismo e do fascismo – tais as similitudes que encontrava na teoria. Sendo que, pelo menos neste ponto, o marxismo tem razão: a prática é mesmo o critério da verdade.

Pelo menos, da verdade histórica.