Um artigo de Pedro Soares Martínez
1 – Aqueles que nos habituámos, desde a adolescência, a ler Eça de Queiroz, de “O Crime do Padre Amaro” até à “A Cidade e as Serras”, sem renunciarmos a meditar sobre as suas ironias e críticas, nem à nossa integral liberdade de espírito, porque “éramos assim em 1940”, continuamos, persistentemente, a não omitir reticências quando se trata de apreciar todas e quaisquer invocações e adaptações da obra inigualável daquele grande Mestre da literatura portuguesa e do pensamento. Parece-nos sempre que o Mestre merecia melhor.
2 – Contudo, sem renúncia a tais reticências, também havemos de manifestar algum júbilo quando a nossa, sempre modesta, produção cinematográfica se decide a focar alguma das parcelas da referida obra, sem quebra de maior relativamente ao sentido da mensagem queiroziana, ou às exigências intelectuais e estéticas do bom gosto. Até também porque, por tal via da escolha de temas respeitantes à vida portuguesa, na sua permanência, na sua autenticidade, e só por tal via, se poderão vislumbrar os rumos daquela produção cinematográfica e da sua aceitação não apenas interna mas também externa, tendo em vista, sobretudo, o Brasil, os outros lusófonos, e até os hispânicos. O destino e o sucesso do cinema português não residirão na imitação dos filmes alheios.
3 – Aquele júbilo, por parte dos velhos cultores do “universo queiroziano”, não será alheio à recente apresentação de um filme traçado e interpretado sobre o tema e o texto de “Os Maias”, em face do qual cumprirá, antes de mais, reconhecer as extremas dificuldades de interpretação de qualquer obra de Eça de Queiroz e das suas personagens, que pressupõe o entendimento do que é Portugal, através de todas épocas, do que foi a sociedade portuguesa, ao sarar das chagas das guerras civis e sob a Monarquia dita liberal ou constitucional. Doutro modo, dificilmente se fixarão, em termos de rigor, figuras como João da Ega, original, sem ser histrião, ou mesmo Gouvarinho, figurino atenuado do Conde de Abranhos. É preciso saber, e até sentir, como éramos, na vida lisboeta, em 1875, para tratar de “Os Maias”.
4 – Os intérpretes deste filme, quase sem excepção e, naturalmente, em graus variáveis, mostram ser capazes de fazer muito melhor ainda, o que parece consolador quanto a muitas possibilidades futuras, embora nem sempre a selecção dos artistas tenha sido a melhor ajustada à maneira de ser e estar dos personagens.
Sobretudo pelo que respeita aos papéis femininos, que talvez exigissem mais acentuados vincos de vivências pessoais e de raça. É bem sabido que o próprio Eça foi menos esclarecedor na definição dos personagens femininos, o que, necessariamente, dificulta, mais ainda, a sua interpretação.
Também merecem aceitação, em termos gerais, os interiores e a sua decoração, sendo de lamentar que, para os exteriores, se não tenha enriquecido o filme com fotografias actuais, por ângulos de visão que permitiriam imagens aproximadamente comuns à actualidade e ao ano de 1875. Sem esquecer o troço lisboeta abrangido das janelas do prédio, ainda existente, onde moraria Maria Eduarda, na esquina da Rua de São Francisco, actual Rua Ivens, com a Travessa da Parreirinha, actualmente absorvida pelo Largo da Academia Nacional de Belas Artes.
Que belas visões de Lisboa que o filme perdeu… E, pelo que respeita aos exteriores, também talvez o que corresponde ao “Ramalhete” tenha sido menos feliz, pois não está de harmonia nem com a opulência dos proprietários nem com o esplendor dos interiores. Mas nesse ponto terá havido a preocupação, talvez exagerada, de seguir o texto queiroziano. Assim como quanto ao azulejo fixado sobre a porta do “Ramalhete”, coberto, e apenas pela parte inferior, por um pano negro, por motivo da morte de Afonso da Maia, como se se tratasse de pedra de armas.
5 – Outro reparo respeitará ao guarda-fato, que é de acentuada pobreza, quando não desajustado à época. O próprio Carlos da Maia, muito rico e muito ajanotado, parece ter-se descuidado na escolha do seu alfaiate, sobretudo nalgumas cenas. E, em figuras de menor grandeza e em figurantes, é de recear que fatiota e chapéus não correspondam, de todo, às modas de 1875. Também se terá esquecido, por vezes, que os chapéus eram então peças da maior importância, indispensáveis, como bem se vê pela impertinência do administrador Vilaça, que não encontrava o chapéu e sem ele não queria sair à rua.
6 – Alguns dirão que, no filme em referência, a representação teatral se substituiu à visão cinética, mas é admissível que isso fosse exigido pelo próprio tema. Contudo, talvez as funções do narrador pudessem ter sido substituídas por diálogos de personagens, que facultassem aos espectadores o conhecimento da sucessão dos eventos fundamentais respeitantes ao romance e à mensagem do autor. Também algumas cenas, não fundamentais, se pudessem ter suprimido, com alargamento de outras, mais esclarecedoras, que foram omitidas.
7 – Fica-se na esperança de que, em melhores condições ainda, a cinematografia portuguesa prossiga sem esquecimento de Eça de Queiroz e do sentido da sua extrema actualidade quanto aos aspectos essenciais da vida portuguesa. Sobretudo “A Ilustre Casa de Ramires” e “A Cidade e as Serras”, obras da época de pleno amadurecimento do autor, estão esperando que a cinematografia lhes dê projecção.
E não poderia também “A Catástrofe” inspirar um filme português?