PEDRO MORAIS
- Título português: Truman
- Título original: “Truman”
- Realização: Cesc Gay
- Elenco: Ricardo Darín, Javier Cámara, Dolores Fonzi
- Espanha, Argentina, 2015, 108 min
- Estreia: 21 de Abril de 2016
“Ainda por cima o pavilhão dos cancerosos era o número treze”. Fosse uma homenagem a Soljenitsin, seria este o mote mais adequado à frieza do campo e à fealdade dos cenários. Uma frase crua e mordaz, a contrariar a trama da realidade, a entrançar um humor mórbido nas camas dos condenados. Mas Cesc Gay, que realiza este “Truman”, não é Soljenitsin, não partilha das mesmas dores e apresenta-nos de forma menos carregada um drama que, de modo eficaz, reflecte sobre a preparação da ausência, ensaia a despedida.
Quem se despede é Julián, doente canceroso a viver os últimos dias numa Madrid sempre tépida, independentemente da sazonalidade estival, sempre acolhedora. Quem o acompanha é Truman, um ‘bullmastiff’ calmo e corpulento, companheiro de aventuras, guardador de memórias que, mais do que rebanhos, secundam os habitantes citadinos. Quem o visita é Tomás, o velho amigo emigrado no Canadá, homem honesto e de poucas falas, mecenas do epitáfio. Juntos viverão uma última semana de aventuras, semana cerimonial, semana de adeus.
Julián recusa a obstinação terapêutica, recusa a encarniçada medicação e, assumindo as consequências da opção tomada, prepara a viagem. O amigo está em cena, a irmã fatigada não arreda pé, o palco que o acolheu centenas de vezes como actor abre-se para o último espectáculo.
“Truman” podia ser um filme sem muito para contar, um filme entre tantos outros, abandonado a um guião demasiado delicado, frágil na sustentação do aparato cénico. Contudo, Cesc Gay revela-se harmonioso na escolha dos cenários, da banda sonora, cuidadoso nos planos. Assim, “Truman” surge digno e seguro, um filme que resiste estoicamente ao lugar-comum mil vezes visto nos “dramas de Domingo à tarde”. As personagens demonstram a sua densidade psicológica a cada hesitação, a cada pausa da dura estrada que trilham. Truman olha-os do fundo da sala, sobre o tapete.
Ricardo Darín, com uma prestação interessante, encarna Julián e configura a força motriz do filme. Por sua vez, Javier Cámara e Dolores Fonzi – esta claramente em segundo plano – afiguram-se como o suporte dramático do guião. “Truman” desvela-se em ritmo lento e elegante, foge dos chavões melodramáticos, encontra-se nos pormenores, no companheirismo dos dois amigos, nos afectos do fiel ‘bullmastiff’. Uma curiosa surpresa do cinema espanhol.
Como surge a certa altura no “Adeus à Linguagem” de Godard, o cão é o único ser capaz de amar alguém mais do que se ama a si próprio…