Os estudos comparatistas há muito que acompanham os trabalhos de investigação sobre Fernando Pessoa. O crescente interesse internacional no autor português conduziu, obrigatoriamente, ao cruzamento do seu legado com o de outros nomes de igual modo importantes para a poesia, literatura e pensamento contemporâneos. Ao nível do pensamento filosófico, Friedrich Nietzsche tem sido uma das figuras que, de forma mais sistemática, tem sido estudada na sua relação de influência com o vate português.
Publicado pela Tinta-da-China, o volume “Nietzsche e Pessoa. Ensaios” (brochado, 446 páginas, 16,20 euros) compila uma série de textos apresentados em vários colóquios e conferências, fazendo uma aproximação entre o nosso poeta-filósofo e o filósofo alemão de espírito trágico-poético. Organizada por Bartholomew Ryan, Marta Faustino e Antonio Cardiello, esta obra procura acrescentar um novo contributo à análise da influência nietzschiana na obra de Fernando Pessoa, nomeadamente, ao nível da sua localização no mapa do pensamento ocidental europeu contemporâneo.
Dividida em três grandes partes, “Raízes, Referências e Conversas”, “Entre Filosofia e Poesia” e “A Estética da Pluralidade”, este livro conta com um artigo de abertura da autoria de Eduardo Lourenço, intitulado “Nietzsche e Pessoa”. Um texto originalmente publicado em francês, na obra “Fernando Pessoa: Roi de notre Bavière” (1988), e aqui integrado pelo seu contributo seminal no âmbito dos estudos sobre a recepção da obra de Nietzsche em Portugal. O volume encerra com “Nietzsche e Pessoa: doze textos”, um artigo de Jerónimo Pizarro que, ao seu estilo, analisa alguns dos problemas resultantes da transcrição de textos localizados no espólio de Fernando Pessoa.
Entre as várias temáticas abordadas no cruzamento dos mundos de ambos os autores, estes ensaios levantam questões acerca da consciência, pensamento, cosmopolitismo, fingimento, estética não-aristotélica, neopaganismo, mitologia criativa, pluralidade do sujeito, metafísica das sensações, niilismo, conceito do nada, a relação entre a criatividade e a loucura, bem como a crise geral da modernidade. Assuntos caros e transversais a ambos os pensadores, aqui abordados de forma bastante livre.
Não obstante a importância deste tipo de estudos, auxiliadores no enquadramento macrocósmico da obra de Fernando Pessoa, devemos não perder o Norte quanto à essência do homem e da obra. Nesse sentido, alguns dos contributos deste livro incorrem em certos erros, porventura perigosos, ao propositadamente descontextualizarem certas ideias ou passagens, extrapolando bem para lá do aceitável. Por mais pertinentes que sejam os estudos comparatistas, hermenêutico-documentais e filológicos, não podemos cair no erro ou tentação de desviarmos as atenções daquilo que é fundamental para o que é acessório ou até especulativo.
Afinal, para conhecermos Fernando Pessoa importa, antes de tudo, conhecermos Portugal e a sua tradição, pois foi nessa que o poeta-filósofo se inscreveu espiritualmente. Dado estar prevista uma edição em língua inglesa desta obra, a ser publicada já no próximo ano, torna-se ainda mais pertinente que este ponto seja tido em linha de conta, não vá o universo pessoano ser, definitivamente, corrompido e transformado num mero reflexo do pensamento e opinião dos seus “especialistas” e “exegetas”.