A Vida Privada de Estaline

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JOÃO VAZ

Que a pouca vergonha em relação à História não é nada de novo, já o sabemos. Que a interpretação revisionista e a tolerância da mesma depende de quem a faz, idem. E que desde Robert Service, Robert Conquest e, mais recentemente, Simon Sebag Montefiore é complicado escrever sobre o “pai dos povos”, também não é novidade para ninguém.

Ora bem, é verdade que este “A Vida Privada de Estaline” não é, propriamente, revisionista ou despudorado, no sentido em que o são alguns editoriais do “Avante!”, que demonstram bem a incapacidade de alguns em tirar ensinamentos da História, bem como o fanatismo interpretativo dos factos, se é que podemos falar de interpretação, nesses casos.

Mas o retrato que Lilly Marcou nos oferece do “camarada José” é, no mínimo, bastante suavizado. É óbvio que não nega a ocorrência dos crimes estalinistas, dos processos de Moscovo e de outras barbaridades. Mas encontra-se aqui, as mais das vezes, a preocupação de contextualizar aqueles, de dividir responsabilidades entre toda a cúpula do partido, de encontrar resistências à actuação de Estaline.

Encontramos o culminar desse processo na página 137, quando se escreve que “foi só depois da fome de 1932-33 – provocada pela seca e a desorganização do trabalho agrícola – que Estaline ordenou um relaxamento da sua política agrícola”. Pergunto: e de quem foi a culpa dessa desorganização, em última análise? Nem sequer menciono a atribuição de responsabilidades ao clima, explicação demasiado esfarrapada para um acontecimento que foi causado, de facto, pela política criminosa do regime e do seu líder.

De resto, esta explicação das coisas surge acompanhada de uma caracterização dos ‘kulaks’ como proprietários, de um modo geral, sem que se diga alguma vez que ‘kulak’ podia ser qualquer um, assim dependesse da boa (ou má) vontade das ‘troikas’ que andavam pelos campos a impor a colectivização.

No resto, o que surge aqui é um retrato de Estaline como um homem quase bom, coitadinho, forçado ao mal pelas circunstâncias. Um homem austero, praticamente ascético, que vivia para o trabalho, a revolução, sem quaisquer pretensões de magnificência, progressivamente isolado da família e amigos por força de um determinismo que a isso o arrastou.

É verdade que ficamos a conhecer muito do que foi a sua vida, em especial ao longo da juventude, mas no global o retrato aqui apresentado trata o homem de forma demasiado benevolente, a mesma benevolência que não encontramos quando se analisam outros ditadores.

Porque, já se sabe, há uns ditadores que são mais do que outros. E há ditadores que são intrinsecamente malignos enquanto outros, pobres deles, partem de uma boa ideia que depois é vítima de deficiente concretização.

Vai para cem anos que isso acontece. Mas, de boas intenções está o inferno cheio. Que o digam os mais de cem milhões que morreram no século XX, às mãos delas e dos seus mentores, nos muitos regimes comunistas que tiveram aqui, com o senhor José, um dos seus momentos mais hediondos. Sem circunstancialismos que lhe valham. Porque, no fim de contas, o grande líder não foi mais do que um criminoso.

Desde Tiflis a Moscovo, desde os assaltos na Geórgia à matança de ucranianos a qual, curiosamente, mal é aflorada neste trabalho. Felizmente, depois dele (originalmente saído em 1996), já tivemos retratos muito mais conseguidos.