A luta dos professores

Em 2019 escrevi neste jornal sobre a questão da recuperação do tempo de serviço dos professores do Continente, Madeira e Açores. Infelizmente, passados quatro anos, a injustiça persiste e estalou a guerra na Escola Pública. Mas comecemos por recordar alguns aspectos das relações entre o Continente e as Regiões Autónomas, repescando um pouco do que então escrevi.

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Durante séculos, as movimentações de militares, polícias, médicos, enfermeiros, magistrados e professores entre o Continente português e os arquipélagos da Madeira e dos Açores foi um factor importante para a aproximação entre estas partes do todo nacional. A colocação de profissionais daquelas classes nas ilhas, idos do Continente, ainda que regressassem, nalguns casos, passados poucos anos, tal como a vinda de estudantes ilhéus para Lisboa, Coimbra, Porto, Santarém e outras localidades, onde acabavam muitas vezes por se fixar e constituir família, contribuiu para o estabelecimento de relações de diversa ordem entre continentais e insulares e para a afirmação de uma cultura e sentimentos comuns.

Madeirenses e açorianos são, na sua esmagadora maioria, “portugueses de gema”, descendentes dos primeiros povoadores ou de portugueses que se radicaram mais tarde nas ilhas na sequência dos fluxos populacionais entre o Continente e os arquipélagos. Estes fluxos, que se registaram ao longo das décadas e das gerações, ocorreram nos dois sentidos.

Um aspecto surpreendente, atendendo à dimensão das ilhas, é a enorme quantidade de personalidades insulares que se distinguiram a nível nacional, tendo inscrito o seu nome na História de Portugal.

No que toca à questão das carreiras dos professores, parece-me totalmente inaceitável que, no mesmo país, haja tratamentos diferenciados, com o argumento, desprovido de qualquer sentido, da insularidade. Ou seja, em minha opinião, deveria recuperar-se igualmente – seja essa recuperação integral ou parcial – o tempo de serviço de todos os professores portugueses, sejam eles madeirenses, açorianos ou continentais!

Os diplomas aprovados nos Açores em 2019 deveriam ter tido a oposição veemente do Representante da República na Região Autónoma dos Açores e do Senhor Presidente da República, já que eram inoportunos, enquanto não houvesse consenso nacional. Caso Sua Excelência o Presidente da República não pudesse impedir a sua promulgação, deveria ter levado o assunto até às últimas consequências, uma vez que é o garante da unidade e coesão nacionais.

Não se percebe, outrossim, que figuras destacadas da vida nacional, com ligações fortes aos Açores, não tenham exercido, que se visse, o seu poder de influência ou manifestado publicamente a sua discordância.

Com que autoridade é que Carlos César, destacado membro do PS, pode criticar as posições dos que advogam a recuperação de todo o tempo de serviço dos professores (os “badalados” nove anos, quatro meses e dois dias), varrendo para debaixo do tapete o facto de os Açores, onde governam os socialistas, terem contribuído para inflamar os ânimos e para incentivar a luta dos professores no Continente? Por outro lado, a Madeira acabou por aprovar, “por simpatia”, legislação semelhante à dos Açores.

Gerou-se, com estas aprovações para as ilhas, uma situação profundamente injusta, com professores de 1ª (Madeira e Açores) e de 2ª (Continente).

Não se percebe, tão pouco, como é que, no futuro, estes profissionais hão-de circular entre as regiões insulares, o Continente português e lugares/posições no estrangeiro, sem que se gerem situa-
ções de profundo mal-estar.

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Feita a síntese precedente, baseada nas palavras que escrevi em 2019, vejamos alguns detalhes adicionais.

As carreiras da Administração Pública estiveram congeladas entre 2005 e 2007 e entre 2011 e 2017, num total, em números redondos, de nove anos e quatro meses. Em 2018 estalou a polémica quando o Governo da República, tendo descongelado as carreiras, optou por devolver aos professores apenas dois anos e nove meses. Ou seja, ficaram de fora seis anos, seis meses e 23 dias.

Na verdade, apenas os professores do Continente continuam a lutar, nesta data, pela contagem dos seis anos, seis meses e 23 dias, uma vez que, através de decretos legislativos regionais – que não foram vetados por quem tinha o poder para o fazer –, aos docentes da Madeira e dos Açores foi reconhecido o direito à contagem integral do tempo de serviço, contrariando, assim, o princípio da igualdade consagrado na Constituição da República. A discriminação é evidente, não só em termos de salários e aposentações, como em variados concursos e candidaturas.

A contagem integral do tempo de serviço é assim, desde logo, uma questão de Justiça! Mas é também uma questão de Moral. Os docentes trabalharam naqueles anos, nas condições difíceis que se conhecem; que autoridade é que os governantes têm para dizer que não há dinheiro quando esbanjam escandalosamente milhões de euros numa teia de nepotismo, compadrio, corrupção e incompetência, como não há memória em Portugal?!

Desde Mário Centeno (ministro das Finanças no período de 2015-2020) que o Governo tem apresentado as estimativas mais díspares para os custos associados à contagem integral do tempo de serviço dos professores, com fundamentos pouco consistentes que não resistiram às análises efectuadas por economistas independentes. Estimativas que empolavam a enormidade do esforço financeiro que seria exigido ao erário público.

De acordo com cálculos recentes do Ministério das Finanças, o impacto da contagem integral do tempo de serviço (nove anos e quatro meses) em todas as carreiras especiais da Administração Pública, incluindo professores, seria de 775 milhões de euros anuais, mas a Unidade Técnica de Apoio Orçamental da Assembleia da República aponta para um valor de apenas 567 milhões de euros!

Ainda mais recentemente, uma nova estimativa do Ministério das Finanças apurou o montante de 331 milhões de euros anuais para a recuperação dos seis anos, seis meses e 23 dias dos professores, valor que suscita, todavia, diversas interrogações. Era bom que surgisse um documento oficial de consulta pública que esclarecesse as contas feitas e os pressupostos do cálculo, em vez de propaganda e demagogia.

Algumas reflexões, antes de terminar:

– Há quem alvitre que o tratamento privilegiado dispensado aos docentes da Madeira e dos Açores foi o “cavalo de tróia” dum plano engenhoso… que conduzirá, mais cedo ou mais tarde, à contagem integral do tempo de serviço dos professores do Continente. Teoria da conspiração?

– Contrariamente ao que tem sido afirmado, os professores não progridem apenas em função do tempo de serviço, pois estão sujeitos a avaliação.

– Os sindicatos dos professores, por muitos defeitos que lhes possamos apontar (quem tem ainda pachorra para ouvir o secretário-geral da Fenprof, Mário Nogueira?), têm-se mostrado receptivos a uma reposição faseada, como forma de atenuar os impactos orçamentais.

A situação gravíssima que se vive na Educação em Portugal revela desprezo pelos professores e pela Escola Pública. O país e o futuro das nossas crianças exigem, da parte dos nossos governantes, uma outra atitude! Onde é que param a “Paixão pela Educação”, “slogan” tão querido dos socialistas, assim como o objectivo de ultrapassar o atraso estrutural do nosso país?