Crime e castigo

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Foram conhecidas esta semana as conclusões da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais na Igreja Católica. Segundo Pedro Strecht, o Presidente da Comissão, foram validados 512 testemunhos, apontando para um número potencial de cerca de 4.815 menores abusados no contexto da Igreja, nos últimos 72 anos.

Pretendendo-se um olhar analítico da questão, importa, desde logo, referir que foram 4.815 casos a mais do que seria admissível. Em circunstância alguma, independentemente do contexto, da idade, do sexo ou de tudo o resto, podemos admitir, tolerar ou justificar qualquer tipo de violação, abuso, invectiva ou insinuação sobre qualquer pessoa que se encontre em situação vulnerável, de subjugação, de incapacidade, de dependência ou num estado tal que não lhe seja permitido compreender ou sustar tais comportamentos.

Passe-se, porém, a crueza dos números e os relatos arrepiantes do contexto, reiteração e modo em que os abusos ocorreram e, numa análise crítica ao relatório, há aspectos que cumpre salientar. O primeiro, o contexto temporal em que estes ocorreram – nos últimos 72 anos – sem que se conheça ainda, em pormenor, se o grosso dessas condutas se centrou em períodos mais distantes ou em momentos mais actuais. Isto é importante, quer porque a realidade económica, social e cultural evoluiu, não sendo nem Portugal, nem o mundo, igual ao de décadas passadas. Tem também sobeja relevância porquanto há que aferir se a tendência é crescente, ou se, pelo contrário, tem vindo a diminuir e com que significância.

Uma outra questão é saber quais os tipos de abuso em concreto, na medida em que, apesar de todos serem inaceitáveis, há diferenças de grau, de gravidade e de consequências.

Convém, igualmente, que se esclareça, de quantos são os abusadores a que se refere o Relatório, para se perceber se a reiteração de condutas é de carácter mais pessoal ou se assume proporções mais endémicas.

Importa também definir qual o grau de certeza na extrapolação que se faz de 512 testemunhos validados, para um número potencial de vítimas quase 10 vezes maior. Sem duvidar do critério e, menos ainda, da seriedade e competência dos membros da Comissão, é importante que se perceba a validade dos testemunhos indirectos e a tendência natural a que a memória nos pregue algumas partidas quando recordamos factos marcantes à distância de décadas.

E, por último, perceber o alcance da asserção “Igreja”, já que esta não se reduz a padres, cónegos e bispos, existindo um vasto conjunto de leigos que têm funções de responsabilidade e contacto directo com os menores, como sejam sacristãos, catequistas, ministros da comunhão, acólitos e um conjunto de dirigentes de movimentos e missões cristãs.

O movimento católico é, seguramente, o movimento juvenil que, de uma forma concertada, mais jovens acolhe no seu seio. Entre aqueles que pretendem seguir o sacerdócio ou a via religiosa, os que pertencem aos coros, aos acólitos, aos escuteiros, aos jovens vicentinos, aos que frequentam a catequese, aos alunos dos colégios e a todos os que, mais ou menso próximos e com maior ou menor frequência participam em eventos relacionados com a Igreja, são, anualmente, dezenas de milhar. Pressupondo um maior grau de informação dos jovens e seus pais, existem hoje mecanismos muito mais alerta e eficientes na avaliação de fenómenos comportamentais de risco, nomeadamente por parte da escola e outros mecanismos de apoio familiar.

A falta de sinalização massiva, não nos deixando tranquilos, deve, pelo menos, dar-nos algum alento no sentido em que o fenómeno será quase inexpressivo. Ainda assim, caberá à própria Igreja Católica, perceber, em função das conclusões daqui resultantes, quais os mecanismos, práticas, formação e processos que deverá adoptar, já no presente, por forma a minorar e eliminar este tipo de práticas.

Com efeito, o dado mais preocupante que o Relatório nos traz é que existem hoje cerca de 100 padres sinalizados por este comportamento tipo. Ainda que com o garante do benefício da dúvida de uma mera sinalização e da garantia da presunção de inocência, trata-se de um número bastante significativo e que merece, pelo menos, acção imediata cautelar, enquanto dura a investigação.

Para futuro, ficarão reflexões mais profundas, como a utilidade e sentido do celibato e a existência, ou não, de relação directa neste tipo de situações.

Importa, porém, fazer algumas ressalvas importantes, a começar, desde logo, pela forma frontal, directa e de auto-responsabilização da Igreja Católica neste processo. Daquilo que se percebe, ao invés de se manter hermética como grande parte das instituições corporativas (religiosas ou não), e bem sabendo do juízo negativo que sobre si impenderia, independentemente do número de casos que viesse a ser descoberto, colaborou em todo o processo, facultando o acesso a arquivos e outros documentos e mostrando-se a primeira interessada a conhecer a realidade em que vivia. E, embora, de pouco ou nada servindo, assumiu as responsabilidades, as culpas, pediu desculpa e apelou ao perdão.

Que o trabalho desta comissão seja o primeiro passo para uma investigação profunda a outras organizações, mais herméticas e quase secretas. Julgo que ninguém duvidará que há situações recorrentes de abuso (físico ou verbal) nos colégios internos, no desporto e associativismo, nas hierarquias militares e das forças de segurança, na saúde, na política, na magistratura, noutros cultos e religiões e nas artes. Os relatos vão-nos chegando, aqui e ali, sendo que a tendência, por conveniência política e ideológica, sempre foi a de encaramos como situações pontuais e de comportamentos individuais, quando bem sabemos que não o são.

Não tornemos isto numa caça às bruxas e não crucifiquemos a Igreja Católica, que não será, seguramente, o único pecador. Que nos sirva para uma investigação profunda a este tipo de fenómenos, para que os possamos combater e para que os nossos filhos e netos não se tornem vítimas em relatórios que só vejam a luz do dia daqui por sete décadas…