Assistimos em Portugal a um novo fenómeno de comentadores, quer nos jornais quer nas televisões, além da expressão do pensamento de simples cidadãos, que aparentam odiar Donald Trump, mas que utilizam os mesmos métodos discursivos que o ex-presidente norte-americano, nomeadamente em relação à actual situação de guerra na Ucrânia, ou sobre as suas causas e consequências. Assistimos hoje a frequentes afirmações, mais motivadas por razões ideológicas ou ódios pessoais, nomeadamente em relação aos Estados Unidos, do que devido a uma análise séria da realidade, afirmações quase sempre muito pouco racionais e que pouco têm a ver com a verdade histórica, ou com o que vemos passar-se à nossa volta.
Na forma de ver dessas pessoas o bombo da festa é a NATO, ou aquilo a que chamam o complexo militar norte-americano, cujo objectivo seria apenas vender mais armas, em que esta guerra seria também provocada pelas mais variadas hesitações e vícios de que acusam a União Europeia, que dizem dependente dos Estados Unidos, acabando por colocar no mesmo plano países democráticos, com provas dadas de resiliência na defesa da democracia, com todas as ditaduras existentes no planeta, mesmo as mais cerceadoras da liberdade dos cidadãos e com meios de comunicação aprisionados na verdade oficial de um qualquer Putin ou XI Jinping. Tal como Trump, estes novos arautos da verdade única, fazem afirmações igualmente avulsas e desconexas, longe de uma análise séria e sustentável da questão ucraniana, cujo objectivo final se resume à tentativa de dividir os países democráticos e os seus cidadãos.
Muitos aparentam respeitar a ONU e lançam loas ao actual Secretário-Geral, mas nunca se lembram de que na Assembleia Geral das Nações Unidas mais de 140 nações votaram a condenação da invasão da Ucrânia pela Rússia. Muitos desses novos arautos acusam os Estados Unidos de fazedores de guerras, do Vietnam ao Iraque, mas esquecem que no século passado os Estados Unidos tiveram centenas de milhares de mortos na defesa das democracias europeias, ao mesmo tempo que nada dizem do acordo realizado entre Stalin e Ribentrop para invadir a Polónia, ou a invasão soviética de Praga e a ocupação da Hungria. Como esquecem, já na era Putin, as invasões da Chechénia em 1999, da Geórgia em 2008, da Crimeia em 2014, da Síria em 2015, do Azerbaijão e da Arménia em 2020, do Cazaquistão e da Ucrânia em 2022, com o consequente criminoso domínio desses povos pela autocracia russa.
O uso de dois pesos e de duas medidas no debate político é matéria antiga, mas nunca como hoje a irracionalidade discursiva esteve tão visível e não apenas por ignorância da história dos povos. Recentemente, li no jornal “Público” um texto de um ilustre especialista de ciências ocultas, Boaventura Sousa Santos, que, por entre um conjunto de insultos à racionalidade e à realidade histórica, deixa as seguintes perguntas: “Porque perpetuar a guerra na Ucrânia é mais importante do que a transição energética? Que maioria democrática decidiu nesse sentido?” Ou seja, segundo este ilustre professor de Coimbra, o Presidente da Ucrânia ou, já agora, a União Europeia, deveriam ter realizado um referendo antes de responder à invasão russa?
Uma cronista habitual do mesmo jornal, de seu nome Carmo Afonso, revela um ódio de estimação pelo Presidente ucraniano e tudo serve para desconversar a realidade da guerra. Alguns generais, felizmente nem todos, aparecem diariamente nas televisões a vender as inexistentes subtilezas de Putin para mascarar, sob a capa de estratégias militares, as suas simpatias pelo ditador russo. Para muitos, cada dificuldade causada pela guerra, ou cada problema não resolvido pelos governos, ou cada injustiça entre as muitas que conhecemos, tudo serve para a tentativa de minar a unidade dos povos na defesa das democracias europeias e da NATO, como o escudo que nos tem protegido das ambições da expansão soviética primeiro e da Rússia de Putin depois. Muitos, tal como o PCP, dizem defender a paz e, para isso, propõem negociações, como se não fosse esse o desejo de todas as democracias, mas esquecem-se de dizer com quem negociar, não certamente com Putin, cuja credibilidade negocial só vive na cabeça destes pacifistas de aviário. Porque não junta o PCP os seus amigos da Coreia do Norte, de Cuba e da Venezuela para negociar a paz com Putin?
Pessoalmente, ainda criança fiquei chocado com o uso da bomba atómica para terminar a guerra no Japão. Já adulto manifestei-me, tanto quanto pude, contra a guerra do Vietnam. No próprio dia do ataque às torres gémeas de Nova Iorque previ a invasão do Afeganistão num texto que então publiquei, onde também antevi a guerra do Iraque. Através de inúmeros textos publicados, fui muito crítico do presidente Bush filho e contra essa guerra de enorme estupidez, a que estamos infeliz e vergonhosamente ligados por um primeiro-ministro português. Apesar de ter uma enorme simpatia pela grande nação americana, nunca deixei de criticar muitos dos seus erros. Mas também não esqueço o que devemos aos Estados Unidos e aos seus dirigentes em duas guerras na Europa, como a forma como preservaram no Japão a cultura japonesa e o seu sistema político depois da vitória em 1945, como não esqueço o plano Marshall e a reconstrução das democracias europeias. Ou, já agora, meio século de resistência contra a tirania da União Soviética, sem que alguma vez, nesse contexto, democratas ou republicanos, tenham usado a superioridade militar americana, ou da NATO, como a via de resolver um conflito que era marcadamente ideológico.
É inegável que governos dos Estados Unidos cometem erros, que a economia americana nem sempre refreia a sua vocação de rolo compressor, mas quantas das tecnologias e dos saberes que hoje facilitam a vida dos povos tiveram a sua origem nos Estado Unidos? Ou quantas guerras foram evitadas pela existência de um polícia americano? Poderá a China de hoje mostrar a mesma capacidade de se reinventar no apoio a outros povos, com o mesmo nível de desinteresse que a América mostrou durante mais de um século? Duvido.
Todas as nações têm na sua história erros e perversões, mas não sou adepto da utilidade de culpar os homens do nosso tempo pelos erros do passado, o que agora se tornou moda promovida pelos vários esquerdismos existentes. Assim, todos acabamos a sofrer, mais ou menos calados, as tentativas de revisão da história nos sentidos que mais convêm aos diferentes donos da verdade. Vejo-os frequentemente a escolher a parte tomada como o todo, mas confesso que não me impressionam, conheço-os demasiado bem.
Presentemente, estou a ler o livro de uma investigadora da London School of Economics, Anne Applebaum, com o título “Fome Vermelha”, livro que aconselho a todos aqueles que pretendam comentar a guerra da Ucrânia. O livro relata a história dos quase quatro milhões de ucranianos que morreram de fome em 1932/33 por ordem de Estaline, como em muitas outras decisões semelhantes na Rússia e na China, ou em outros países comunistas. O livro relata também o logo caminho percorrido pelo povo ucraniano na defesa da sua língua e da sua nacionalidade, de que a presente guerra é a continuação. Da mesma forma, esta invasão de Putin é a continuação das ambições de expansão dos czares russos no passado e da Rússia soviética depois.
A Ucrânia tem hoje todas as condições para ser um país independente, com um povo livre e capaz de promover o seu próprio progresso económico e social. Infelizmente, milhares de ucranianos estão a morrer por esse ideal de paz e de progresso que é o mesmo ideal da Europa, fixado nos tratados e de acordo com a visão dos pais fundadores da União Europeia. Por isso ajudar os ucranianos neste tempo de necessidade é um dever, porque é simultaneamente defender os nossos próprios valores e interesses democráticos e europeus. ■