Ao longo das nossas vidas somos deparados com desafios de diversa ordem, quer a nível pessoal, quer na esfera do nosso mundo privado. Se, actos tão naturais como começar a andar ou verbalizar as primeiras palavras nos são intrínsecos e quase necessários para a nossa sobrevivência, não deixam de representar um desafio, diversas tentativas e, finalmente, conquistas. Pelo meio, uns arranhões, uns tropeções e uns atropelos à língua de Camões que, teimosamente, manteremos até finar. É, por isso, que nem todos damos os primeiros passos na mesma data ou desatamos a declamar poesia assim que batem os seis anos. São processos de aprendizagem, de coragem, de risco que entendemos correr quando nos sentimos confortáveis, com nós mesmos, com os outros e com o meio que nos envolve. Assim o continuamos a fazer à medida que crescemos, tomando decisões mais ou menos maturadas e com maior ou menor grau de risco.
Grosso modo, as nossas opções (ou a resposta os desafios que vamos enfrentando) têm consequências automáticas ou quase, são mensuráveis, quanto mais não seja pela satisfação imediata que representam. Se, num laivo da estupidez própria dos quinze anos, resolvo saltar do telhado, as duas pernas partidas após o embate no cimento logo me dizem que não foi boa opção. Ainda que a coisa corra bem e que saque os aplausos da plateia, tão imberbe e estúpida quanto eu (menos um bocadinho, vá, já que nem bilhete pagaram, garantem o espectáculo e têm a certeza de conservar o esqueleto com o desenho que Deus quis), quando, aos trinta tenha dificuldade em agachar-me e o médico postule uma vértebra esmagada, com pouco esforço de memória consigo representar o exacto momento em que tal aconteceu, penitenciando-me pelo salto que custou um beijo à Sandra, à laia da aposta (e que nem grande beijo foi, já que o aparelho nos dentes a fazia salivar como um beduíno).
No geral, é, pois, relativamente fácil estipular o nexo de causalidade: acção A; resultado B. E assim seguimos entre lamentos e conquistas, mas devidamente informados.
Coisa diferente – e para a qual ninguém nos prepara – é a paternidade. Uma troca de fluídos, desejada ou acidental, traz de prenda um ser, nove meses em média, após o emprenhamento. Uma criatura indefesa e que em tudo depende de nós, ao contrário da maioria das espécies do reino animal. A questão primária é de sustento, claro está, mas há todo um novelo relacional que em muito a ultrapassa. Os exemplos, o carinho, a disponibilidade, a atenção, o tom de voz, a (im)paciência e todo um manancial responsorial hão-de moldar o rebento, que se tornará criança, depois jovem e, por fim, adulto. Chama-se educação e é um processo contínuo, dúctil e nem sempre rectilíneo. Ainda que houvesse – e não há! – um manual de instruções que garantisse determinado resultado, o nosso filho haverá de estar exposto a outras situações relacionais, externas e psicossomáticas que influenciarão as suas respostas, os seus quereres, os seus humores, os seus valores. Chama-se personalidade. Ou seja, o nosso filho, ser adulto, é a soma de um sem número de estímulos, nossos e dos outros, internos, externos e próprios (que mais não são do que a forma como ele os apreende e valora). Nunca, ao longo deste processo, podemos atribuir uma determinada característica sua a uma acção passada nossa. É, por isso, que educar é o desafio mais complexo que nos é colocado. O resultado das nossas acções só se manifestará (e apenas em parte) em momentos muito posteriores, quando já não vamos a tempo de emendar a mão.
O mesmo se passa não só com a educação parental, mas também com a educação estatal. Esta vai muito para lá da escola, dos conteúdos lectivos e das grelhas de correcção. Vai para um exemplo que lhes damos enquanto sociedade, os valores que postulamos, as políticas que escolhemos, a importância que atribuímos ao individuo e aos outros… Não é dever do Estado co-educar (a escola e os professores servem para ensinar, cabendo a educação à família), mas é dever do Estado definir o conceito de sociedade em que eles devem ser educados, criando as condições, formais e materiais, para que essa sociedade os valorize enquanto pessoas, os respeite enquanto trabalhadores, os premeie enquanto profissionais e os puna e promova a sua reabilitação e reintegração, quando desviantes.
A pretexto destes valores, a esquerda explora a onda da igualdade formal e ditadura material, tomados que estão, de assalto, os poderes decisórios. As opiniões, crenças e valores são hoje tuteladas e monitorizadas pelo Estado e pela opinião pública dominante. Quando contrárias, lá está um procurador da República, néscio ou politicamente formatado, para operar o contorcionismo legal que reverta a tutela parental. O ensino é público e tendencialmente gratuito, vertido em papel de lei, quando, na prática, o Estado é incompetente na gestão dos recursos públicos e meios humanos. Em Portugal, o custo de um aluno no ensino público é superior a grande parte dos colégios privados e com resultados muito inferiores. Somos um dos países europeus com maior número de professores por cada mil crianças, mas temos horários zero, atrasos significativos na colocação de docentes, absentismo sem paralelo, falta crónica de material escolar, um rácio muito baixo de auxiliares e cantinas escolares fechadas. No ensino superior, a par com a Itália, somos o país da Europa que representa um custo mais elevado para os (pais dos) alunos fruto do seu subfinanciamento recorrente. Por um qualquer ofício divino, as médias de ingresso são estratosféricas, existindo, no entanto, cursos com empregabilidade zero e outros desertos de candidaturas que continuam, no entanto, ano após ano, a abrir vagas. Curiosamente, num inquérito recentemente realizado, somos dos países onde os empregadores têm mais dificuldade em contratar pessoal especializado e qualificado para as necessidades de mercado. Ou seja, as médias são ao nível da NASA, as competências ao nível dos dentistas de rua na Índia…
Isto, porém, pouco interessa a uma esquerda que vive do nepotismo, dos apoios, dos subsídios e das teias de favores. O mérito, seja ele fruto da educação familiar ou próprio, tem cor e cartão, apesar de se propalar a igualdade e indiscriminação. Costa contratou António Costa Silva e o leque de amigos de Sócrates é, por todos, bem conhecido. Medina, estreou-se com António Furtado, antigo director municipal da CML (que transitou para a Câmara da, também socialista, Inês de Medeiros) e investigado pela Polícia Judiciária por suspeita de corrupção e tráfico de influências e, ganhando-lhe o gosto, estendeu passadeira vermelha a Sérgio Figueiredo, ex-TVI, onde foi comentador residente quando aquele era director de informação. E, se pouco ou nada se entende como é que um jornalista é contratado como consultor para o Ministério das Finanças, menos se compreende que este tenha o seu vencimento equiparado ao salário de um ministro. Afinal, os favores também têm tabela de preços…
Hoje, educar uma criança para que se torne um adulto funcional, só obedece a duas premissas: alimentá-la e filiá-la no Partido Socialista. Se, pelo caminho, aprender a lamber cús, tanto melhor, que pode almejar a ministro. ■
Foto de Myles Tan mylestan