Governo põe reformados e desempregados em risco

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Segundo a “Síntese da execução Orçamental”, publicada em Setembro de 2020 pela Direcção-Geral do Orçamento do Ministério das Finanças, a Segurança Social teve, no período de Janeiro a Agosto de 2020, um saldo negativo de -85,9 milhões de euros, enquanto em idêntico período de 2019 teve um saldo positivo de +2.041,1 milhões. É uma diferença que deve motivar grande preocupação.

As perguntas que imediatamente se colocam são as seguintes: 

Por que razão se passou de um saldo positivo tão elevado em 2019 para um saldo tão negativo em 2020?”

E quais serão naturalmente as consequências para os reformados e para outros portugueses (por exemplo, os desempregados) cujos apoios da Segurança Social são vitais para poderem sobreviver? 

Neste estudo procurar-se-á, utilizando dados próprios oficiais, dar respostas a estas perguntas, que são questões que preocupam já muito portugueses. 

1. Os apoios que constam das leis publicadas pelo Governo após o início da pandemia e quem os pagou 

Um dos primeiros diplomas que concedia apoios às empresas e trabalhadores foi o Decreto-Lei 10-G/2020, que no seu art.º 4º, com o título “Direitos do empregador”, dispunha o seguinte:  

“Em situação de crise empresarial (queda de facturação superior a 40%), o empregador tem direito a:  

  • a) Apoio extraordinário à manutenção de contrato de trabalho, com ou sem formação, em caso de redução temporária do período normal de trabalho ou da suspensão do contrato de trabalho, nos termos dos artigos 298.º e seguintes do Código do Trabalho (o chamado lay-off rápido, em que o trabalhador passou a receber apenas 2/3 do salário ilíquido, sendo 70% pagos pela Segurança Social e apenas 30% pela entidade patronal);  
  • b) Plano extraordinário de formação pago pelo IEFP, que é financiado pela Segurança Social;  
  • c) Incentivo financeiro extraordinário para apoio à normalização da actividade da empresa” (este “incentivo financeiro extraordinário”, segundo o artº 11º do mesmo decreto-lei, é um subsidio pago às empresas quando iniciassem a actividade, sendo de um salário por trabalhador, 635 euros, que depois foi aumentado para dois salários mínimos por trabalhador, 1.270 euros, como mostraremos mais à frente, suportado pelo IEFP, que é financiado pela Segurança Social, sendo que em 2018 o IEFP recebeu da Segurança Social 571,3 milhões de euros, o que representou 85,3% do seu orçamento de receitas);
  • d) Isenção temporária do pagamento de contribuições para a Segurança Social, a cargo da entidade empregadora (os trabalhadores continuaram a descontar sobre os 2/3 do salário que receberam, mas as empresas deixaram de descontar para a Segurança Social, o que determinou uma perda elevada de receita para esta).  

E o artº 16 deste Decreto-Lei 10-G/2020 estabelece que “os valores da compensação retributiva da responsabilidade da Segurança Social pagos ao abrigo do presente decreto-lei são financiados pelo Orçamento do Estado”. 

O Decreto 12-A/2020, aprovado depois, no nº 3 do seu artº 26º, cria um “Apoio extraordinário à redução da actividade económica de trabalhador independente”, no caso de paragem total da sua actividade, que varia entre um valor do IAS (438,81 euros) e o valor do salario mínimo nacional (635 euros), com a duração de um mês mas podendo ser prorrogável por seis meses. 

E no nº 6 deste mesmo artigo dispõe-se que este apoio é também “concedido, com as necessárias adaptações, aos sócios-gerentes de sociedades, bem como membros de órgãos estatutários de fundações, associações ou cooperativas com funções equivalentes àqueles, sem trabalhadores por conta de outrem, que estejam exclusivamente abrangidos pelos regimes de Segurança Social nessa qualidade e que, no ano anterior, tenham tido facturação comunicada através do ‘E-fatura’ inferior a 60.000 euros”. 

Tudo isto é pago pela Segurança Social, mas neste caso nada na lei diz que tem de ser suportado pelo Orçamento do Estado. 

Segue-se o Decreto-Lei 27-B/2020, que prorroga e altera o Decreto-Lei anterior criando um novo “complemento de estabilização para os trabalhadores com retribuição base igual ou inferior a duas vezes o salário mínimo nacional, no montante mínimo de 100 euros e máximo de 351 euros pago em Julho que tenham estado na situação lay-off ou sujeitos à redução temporário de horário de trabalho (artº3º)”. 

E o artº 4º do mesmo Decreto aumentou o “incentivo à normalização da actividade empresarial de um para dois salários mínimos por trabalhador, pagos de uma forma faseada às entidades patronais”. Mas, neste caso, o artº 8º deste Decreto-Lei dispõe que “os valores pagos pela Segurança Social ao abrigo deste decreto-lei são financiados pelo Orçamento do Estado”.

A seguir foi publicado o Decreto-Lei 46-A/2020, que criou um apoio extraordinário tanto às empresas do sector privado como do sector social, que fossem consideradas em “situação de crise empresarial (quebra na facturação igual ou superior a 40%), em que se verifique uma redução do período normal de trabalho”. Neste caso, o trabalhador tem direito à remuneração pelas horas trabalhadas e, para além disso, a uma compensação que no máximo pode atingir três salários mínimos, variando entre 2/3 da remuneração ilíquida das horas não trabalhadas e 4/5 da remuneração ilíquida das horas não trabalhadas (artº6). 

Segundo o artº 7º do mesmo Decreto-Lei, a entidade patronal  tem direito a um apoio financeiro, também aqui pago pela Segurança Social, correspondente a “70% da contribuição retributiva, sendo apenas 30% suportado pela entidade patronal”.  

E o artº 9º deste decreto-lei também dispõe, mais uma vez, que a entidade patronal que obtenha os apoios referidos anteriormente “tem direito à isenção ou dispensa parcial do pagamento de contribuições a seu cargo relativas aos trabalhadores abrangidos, calculadas sobre o valor da compensação (recebe o subsídio e não paga nada à Segurança Social, enquanto os trabalhadores têm de descontar). Neste caso, o artº 17º do decreto-lei 46-a/2020 estabelece que os valores da compensação pagos pela Segurança Social, bem como a isenção, “são financiados pelo Orçamento do Estado”. 

2. Uma coisa é o que a Lei dispõe, e outra coisa diferente é o que o Governo faz 

Efectivamente, uma coisa é o que a Lei dispõe e devia ser cumprido pelo Governo, e outra coisa bem diferente é aquilo que o Governo faz, como vamos mostrar, e que está a descapitalizar a Segurança Social sem que a Assembleia da República diga alguma coisa. 

O quadro 1, com dados divulgados pelo Ministério das Finanças, mostra a despesa total com os apoios referidos e quem os pagou.

Até Agosto de 2020, já tinham sido despendidos apoios às empresas e aos trabalhadores num total de 1.943,1 milhões de euros, tendo 61,7% (1.199,6 milhões de euros) sido pagos pela Segurança Social com os descontos directos e indirectos dos trabalhadores, não tendo esta sido reembolsada de tal despesa pelo Orçamento do Estado, como a lei dispõe. 

Os dados do quadro 2, divulgados pelo próprio Ministério das Finanças, provam isso.

Entre 2019 e 2020, e em relação ao período Janeiro/Agosto de cada ano, verifica-se uma quebra nas contribuições de 250,4 milhões de euros em 2020, uma parte certamente determinada pelas múltiplas isenções de contribuições concedidas pelo Governo às entidades patronais, mas não aos trabalhadores. 

O que é ainda mais grave é o facto de a Assembleia da República ter aprovado um Orçamento Suplementar para 2020, em que consta a transferência de 2.492,4 milhões de euros do Orçamento do Estado para o Orçamento da Segurança Social para esta poder suportar a despesa extraordinária com os apoios a empresas e trabalhadores devido ao COVID 19. 

O Governo, até Agosto de 2020, dos 2.492,4 milhões de euros a transferir, só transferiu 460 milhões (18,5% do total), e a Segurança Social já teve de pagar 1298,6 milhões de euros, o que causou a descapitalização da Segurança Social e o saldo negativo de -85,9 milhões. 

É evidente, se a transferência não for feita, o Governo aproveitará a situação que assim criou na Segurança Social para congelar as pensões ou conceder aumentos de miséria em 2021 e para não aumentar o apoio aos desempregados, apesar de a maioria não receber subsídio de desemprego (apenas 34 em 100 recebem). 

É urgente exigir que o Governo cumpra as leis que aprovou e que a Assembleia da República esteja atenta e ponha fim a esta situação de violação da lei que está a descapitalizar a segurança social. ■