Das minhas leituras de adolescente (julgo que das bandas-desenhadas do “Lucky Luke”), uma das expressões que sempre me suscitou admiração foi a de “charlatão”. Com o aprofundar das leituras e conhecimento de outros epítetos do género, confesso, ainda hoje, a minha profunda admiração pela palavra. Aliás, acho que é a mais subestimada da língua portuguesa. Basta ver que os sinónimos são todos de carácter pejorativo: vigarista, impostor, aldrabão, intrujão, fariseu, trapaceiro, desonesto, burlão, falso, tratante e outras que tal… Quanto a mim, erradas, porque a “aproximação” versa o carácter e não o ‘métier’… E, na parte que me toca, um charlatão é uma ocupação profissional tão digna quanto as outras. É uma espécie de vendedor de banha da cobra com um curso superior, mestrado e pós-graduação. No meu imaginário, um charlatão seria um tipo vestido de preto, de cartola alta e de charuto proeminente, assim a roçar a figura de Abraham Lincoln. Os seus gestos largos e a sua voz grave só atestariam a educação e nobreza de linhagem. Não seria, portanto, vexatório ou, de alguma forma, diminuído no exercício do seu mister, pelo contrário, seria motivo de orgulho para pais e filhos quando instados a contar a sua profissão:
– O meu pai/filho é um charlatão!
Suscitando a admiração dos demais e uma certa inveja que nem todos conseguiriam conter.
Não se pense, porém, que um charlatão tem uma vida fácil. Não tem! Primeiro, porque não bastam os dotes naturais. Requer muito estudo, muita dedicação, muito empenho. Segundo, porque não há universidades de charlatães (embora o PS faça escola próxima) onde se possa aprender a arte, ou livros por onde estudar, ou sequer bibliografias que se aproveitem (a de Sócrates foi um ensaio de aldrabice, pelo que se espera a reforma de Costa para que este leve as suas memórias ao prelo). Ou seja, são todos autodidactas. Terceiro, pela forte e feérica concorrência, quase desleal. Hoje, qualquer Presidente de Câmara, aspirante a ministro ou secretário de Estado, julgam que são charlatães, quando, na verdade apenas são vigaristas, impostores ou burlões munidos de um cartão de militante. Há uma distância quase galáctica entre o chefe e essa cambada que o segue, intuindo que ser charlatão é requisito de governação. Não é! É condição inata, como o sangue azul. Ou se nasce, ou não se compra, daí que, de forma reiterada, tropeçam nas próprias tropelias ou fiquem presos nas teias que os alcandoraram ao partido e ao poder. Néscios, no mínimo…
Daí que os charlatães não tenham delfins ou aprendizes. Podem ter admiradores, seguidores ou até discípulos, mas nunca mais que isso. Pense-se, por exemplo, em Medina: alguém crê que aquele ministro, com cara imberbe, é, ou alguma vez será, um charlatão? Nem numa visão onírica contemplamos tal cenário.
Um charlatão vende-se, muito antes de vender os produtos que merca. Esse é o seu principal atributo. Ainda ele não abriu a mala e já estamos todos de notas na mão a licitar não sabemos sequer o quê! Por isso é que adoramos os charlatães, porque eles nos fazem crer que as ideias são nossas, que o poder é nosso e que eles estão lá para satisfazer as nossas necessidades (que não sabíamos sequer que as tínhamos antes de ele pisar o palco).
E esta troca de correspondência entre o primeiro-ministro e o Presidente da República, cheira profundamente a charlatanice da boa. Numa era de “tweets”,
“Facebooks”, directos por tudo e por nada e primeiras páginas carregadas de escândalos e polémicas, uma carta (que se presume manuscrita, para dar mais élan), é intimista, saudosista, respalda cuidado, deferência e boas maneiras. Há um certo revivalismo dos mais nobres escritos de Eça, Camilo ou de Mário de Sá Carneiro. Depois, ao preço a que estão os selos, é bom saber que os mais altos dignatários da Nação, não olharam a despesas. E, por último, há sempre o suspense da mensagem, que se tem por confidencial, levando-nos a imaginar, quer o trato, quer o conteúdo. É bonito ver uma dignidade que nenhum dos dois possui respaldada num documento apócrifo que ficará para a posteridade, num exercício de hipocrisia sublime. Há um certo romantismo que nos inebria a todos, ora confessem…
Consta-se que Costa terá proposto ser o Presidente da República a avalizar política (e ética e judicialmente) as suas escolhas para titulares de pastas públicas (leia-se ministros e secretários de Estado), mais do que meando responsabilidades, transpondo-as para a Presidência, confiando na sua falta de cautela, ingenuidade, imprudência ou no seu ego desmedido que aceita tudo o que soe a poder ou ribalta. Desconhecendo-se a resposta do Presidente, parece que, desta vez, atentou na armadilha e esquivou-se ao repto, devolvendo a responsabilidade das escolhas a quem de direito. E, nesta novela de missivas, o essencial escapa aos olhos: em pouco mais de dez meses de governação de Costa, uma dúzia de ministros e secretários de Estado tombaram, sucumbindo a escândalos que foram acumulando com o beneplácito de quem os nomeou.
Numa altura em que um dos assuntos prementes do ciclo legislativo que se
avizinha é uma revisão constitucional
comezinha, de um diploma datado de há quase meio século e saído de um contexto (pós) revolucionário, estanque e alheio às transformações e mudanças vivenciadas, quando se impunha aproveitar a oportunidade (até porque carece de constrangimentos e alinhamentos políticos difíceis de obter) para se promover uma verdadeira e profunda alteração ao regime constitucional. Costa, na carta que remete a Marcelo, fá-lo, ainda que de uma forma sub-reptícia, e naquilo a que se limita uma sacudidela de água do seu capote e que sabia que não poderia ter aceitação ou cabimento. Foi colhendo os louros da iniciativa.
O que se devia clamar é que um Governo, fosse esse qual fosse, que visse, durante uma legislatura, o elenco governativo ser alterado em mais de 20% (por exemplo, embora este número até peque por excesso), determinaria a sua demissão automática. Uma solução destas, estaria muito mais próxima do pacto social que Rousseau defendia dever existir entre governantes e eleitores, garantindo uma desejável estabilidade política e, em última instância, determinando a que as escolhas de quem decide (ou aceita) cumprissem mais cautela, maior exigência e se pautassem por critérios de seriedade e competência.
E convirá lembrar que o Costa que propôs este escrutínio presidencial é o mesmo que fez tábua rasa, ano após ano, da legislação que Passos fez aprovar ao criar a CRESAP, um órgão independente para avaliar, de forma transparente, isenta e rigorosa o mérito dos candidatos a gestores públicos, é o mesmo que, de forma cândida, pretende responsabilizar terceiros pela rebaldaria que permitiu e instigou e que a sua devoradora máquina partidária todos os dias alimenta.
Digam lá que não há que admirar, fazer a devida vénia e aguardar pelo próximo acto? ■