Em duzentos anos, muito pouco mudou na relação do Ministério das Finanças com o País. E continuamos à espera de ver cumprida a frase que todos os ministros repetem: “Não se governa com ilusões”…

“Encontramo-nos em frente de números que obrigam à reflexão, tão fortemente eles são impressionantes” – arrepiava-se um ministro das Finanças ao apresentar ao Parlamento um orçamento mais do que deficitário. Corria o ano de 1921 – durante o qual oito personalidades aceitaram o espinhoso cargo, para o largarem ao primeiro pretexto, tal era o descalabro das contas públicas.

Quase cem anos depois, o Governo de António Costa apresentará o seu Orçamento do Estado. Os deputados a favor defenderão o documento, o ministro apresentará os seus argumentos, a oposição tratará de o criticar. Mas, lendo os lamentos dos governantes de outrora, uma coisa é certa: em duzentos anos, muito pouco mudou.

Durante a Monarquia Constitucional, cada Orçamento era precedido por um elaborado relatório em que o ministro ou secretário de Estado (os títulos foram mudando) apresentava em detalhe, e ocasionalmente com honestidade, a sua opinião profissional e pessoal sobre a situação das Finanças do Reino.

Na I República, o hábito manteve-se, mas praticado apenas quando existia um Governo estável, o que não foi muito frequente durante os 16 anos de caos jacobino. Em 1926, o último ano da I República, o ministro considerava que “um dos males de que tem enfermado a administração pública é a falta de orçamentos aprovados no início dos respectivos anos económicos”, notando que “o sistema duodécimos tem sido extremamente pernicioso, tem custado ao Estado muitos milhares de contos”.

Da Ditadura Nacional para o Estado Novo, a II República adoptou uma leitura financista do Orçamento, em que abundavam tabelas e estatísticas, com o Parlamento reduzido a um pequeno papel de análise técnica. A actual III República manteve a tradição financista do Estado Novo no Orçamento em si, mas rodeando o documento com uma barragem de demagogia política à moda da I República.

Não deixa de ser interessante que, para o Orçamento do Estado de 2017, o Governo de António Costa tenha reatado a tradição dos relatórios orçamentais do Constitucionalismo monárquico, neste caso através de uma campanha de propaganda na internet. Costa, no entanto, não inova: consciente ou inconscientemente, segue os trilhos do velho Fontes Pereira de Melo, que por quatro vezes foi o todo-poderoso ministro dos Negócios da Fazenda (era esse o título oficial das Finanças).

Os Orçamentos de Fontes pautavam-se sempre por um tom abertamente optimista. Começava por admitir, perante os deputados, que “a situação da Fazenda Pública, como acabais de ver, não é próspera”. Mas ia alterando de forma engenhosa o tom do discurso, para explicar como a austeridade não era solução. “Preencher com imposto o deficit com que lutamos é impossível” – afirmava o governante, alegando que “iria muito além das faculdades do contribuinte”. Diminuir despesa também seria difícil, pois “cortar sem piedade nos vencimentos dos servidores do Estado seria injusto e absurdo”.

A solução, para Fontes, estava nos projectos ambiciosos para desenvolver o País. Espraiava-se então em declarações de “fé nos benefícios da paz pública, na influência crescente dos nossos caminhos de ferro, nas vantagens que tiraremos da próxima abertura da via férrea espanhola, que há-de fazer de Lisboa um porto da Europa no Oceano Atlântico”. Discurso não lhe faltava. Infelizmente, após um endividamento cujos juros consumiam quase toda a receita fiscal, a Nação não alcançou a desejada prosperidade. Caso similar temos na gestão do Erário e na política de “grandes obras públicas” que conhecemos desde 1974.

Em 1891, ano de bancarrota nacional após crises fiscais graves em 1857, 1866, 1873 e 1876, o ministro desesperava perante “um deficit que atinge 160 por cento das receitas ordinárias”. Num discurso de flagrante actualidade, apesar de ter 125 anos de velho, o governante atacava a impressionante carga salarial de uma administração pública demasiado grande, notando que a crise financeira se devia em grande parte “ao aumento de despesa proveniente de melhoria de vencimentos aos empregados e funcionários civis”. Onde foi que já ouvimos isto?

No entanto, como era frequente nesses tempos e se tornou hábito, a austeridade caiu para o lado dos contribuintes. Nesse mesmo ano de 1891, o ministro das Finanças optou pela solução peregrina, que um dia certamente veremos repetida, de comparar a situação fiscal portuguesa à de países do Norte da Europa, e que serviu para demonstrar “a situação privilegiada que tem desfrutado o contribuinte português”. Seguiu-se mais uma carga de impostos.

Os ministros do início da Monarquia Constitucional, talvez por força dos eventos da época, eram bem mais pessimistas do que os seus sucessores. Francisco Campos Henriques (em 1835 com o título de secretário de Estado dos Negócios da Fazenda), um dos primeiros titulares das Finanças a apresentar um relatório ao Parlamento, lamentava-se: “A Nação viu-se forçada a contrair empréstimos no estrangeiro, e a agravar assim as gerações futuras, repartindo com elas uma parte de nossos males”. Zurziu “o hábito de despender largamente” dos políticos portugueses, bem como a “exaltação a favor do crédito” devido à “facilidade de obter dinheiro”. E rematou, numa tirada que se repete e repete desde então, que Portugal ia “correndo de precipício em precipício”. Pouco se alterou desde então.

Não que os vários responsáveis pelas Finanças não tenham procurado soluções. Logo neste primeiro relatório foi sugerida “a criação de um Tribunal de Contas, aonde todo o funcionário virá responder de sua gerência”, isto porque “as contas da verdadeira receita do Estado não merecem inteira confiança”. A criação do dito organismo foi sendo sucessivamente adiada até 1849.

Ainda durante este primeiro período constitucional, tentou-se diminuir a despesa através de cortes na administração, assinalando-se no orçamento do Estado de 1839 que se tinham poupado 339 mil réis através das “deduções nos vencimentos dos empregados”. No aumento de impostos, os nossos ministros sempre foram inovadores. Entre o “imposto do subsídio literário [para subsidiar indirectamente a educação] a 600 reais por cada pipa de vinho de 26 almudes”, o qual foi aprovado “sem distinção de verde ou maduro”, e o novo imposto sobre os refrigerantes – não vai uma grande diferença.

Entre outras medidas (frequentemente onerosos impostos indirectos, para não provocar a revolta das massas) encontramos um imposto dos “direitos de consumo pela alfândega municipal de Lisboa”, um imposto sobre o consumo de “água no continente e ilhas”, ao qual ainda se somou um “imposto adicional” sobre o anterior (caso em nada diferente da acumulação moderna de imposto automóvel e IVA) e ainda um “imposto de vinho e aguardente”. Alguns impostos criados durante este período, como o Imposto Predial, duraram até ao fim dos anos 80… do século XX. Toda esta carga fiscal reduziu o investimento em Portugal, sucedendo-se as crises e a instabilidade económica ao longo da Monarquia Constitucional e da I República e culminando tudo no golpe de Estado de 1926.

Ao longo dos últimos dois séculos, uma pequena frase acompanha invariavelmente os meses de discussão do Orçamento do Estado: “Não se governa com ilusões”. Todos os políticos a proferem, todos os ministros das Finanças a repetem. Tristemente, não há registo de algum dia ter sido seguida.