“The freaky show…”

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1996

Quem escreve corre um risco muito maior do que o alcance da sua escrita. Corre o risco presente da exposição, do ridículo, da devassa, dos julgamentos em praça pública, dos insultos e das ameaças. Mas corre, também, o risco futuro do seu passado que passa a constar dos arquivos, das redes sociais e que fica apenas ao alcance de uma pesquisa no “Google”, para que possa ser julgado, lido, distorcido e qualificado a bel-prazer de quem julga. Todos têm direito a mudar de mulher, de clube, de partido e de opinião, menos os escritores. Se hoje, num determinado contexto e com os elementos de que disponho, tomo uma posição, a mesma será usada para me qualificar para todo o sempre, não me sendo permitida qualquer contextualização histórica ou social e, menos ainda, o direito de evoluir. Apenas o dever de me penitenciar e oferecer as costas às merecidas chibatadas. Daí que a prudência aconselhe a não nos expormos e fazermos artigos de opinião redondos, que não passem de verbos de encher, a fim de não hipotecarmos o nosso futuro, como fazem, aliás, a maioria dos cronistas da moda, mantendo-se na roda como hamsters.

Contudo, há imperativos morais e de carácter que, de quando a quando, nos impelem a escrever, mesmo sabendo que os temas são sensíveis e que a nossa opinião vai contra o “status quo” da polícia de valores que actua sob a capa do politicamente correcto. Há coisas que não podemos calar: por nós, pelos nossos filhos e pelas gerações vindouras. Não ceder ao conformismo, por comodidade individual, não é um acto de coragem. É a garantia de defesa da democracia, pluralista de opiniões e respeitadora das nossas divergências, num exercício perigoso, mas cada vez mais necessário.

A semana passada, o São Luís viu uma peça de teatro ser interrompida por uma pessoa que entendeu ser correcto subir ao palco e vociferar um rol de impropérios contra o actor que representava um determinado personagem. Fê-lo, não de forma espontânea, mas num exercício concertado e premeditado, a coberto de uma trupe de apoiantes, exibindo tarjas, gritando palavras de ordem e multiplicando-se em aplausos. Fê-lo, em manifesto desrespeito quer pelo actor, restante elenco e produção e por todos aqueles que pagaram bilhete para assistir a um espectáculo. Fê-lo em profundo e manifesto desrespeito pela lei vigente e de lá saiu impune. Fê-lo sem que se ouvisse uma palavra de condenação por parte dos nossos governantes, do Ministério Público ou o apoio deliberado e sem tibiezas ao actor André Patrício, que se viu enxovalhado e menorizado, primeiro num palco e depois nos jornais e televisões. E, sobretudo, fê-lo em manifesta traição à causa que disse defender, representando o maior retrocesso de que há memória na sua tentativa de afirmação e compreensão perante os demais.

Ao subir ao palco para gritar “Transfake! Desce do palco! Tenha respeito por esse lugar!”, Keyla Brasil veio dizer ao mundo que cada um tem que interpretar o seu papel, por desconhecer a dor, as dúvidas, os dilemas, as alegrias, em suma, as idiossincrasias de quem não é como nós. O que Keyla Brasil disse, no fundo, foi que um “trans” jamais poderá representar qualquer outro papel que não esse, pelo mesmo exacto motivo. Reduziu a inclusão que o movimento pretende a um beco sem saída, estreitado nos seus limites. Condenou inexoravelmente a arte que diz não poder praticar por discriminação, postulando que, de ora em diante, tenham que ser bêbados, doentes terminais, pedófilos, assassinos em série, vítimas de violação e tantos outros a representar os papéis dos personagens que lhes cabem. Condenou o teatro, o cinema e as artes cénicas ao vazio, esquecendo que qualquer uma destas é a arte da representação. Olvidou todo um passado nas artes interpretado por nomes maiores do teatro do cinema, em papéis contrários à sua identidade. Cary Grant, Rock Hudson, Laurence Olivier ou Marlon Brando, devem ser riscados da história pela afronta de interpretarem papéis de galãs, quando eram homossexuais. O mesmo para as actrizes Greta Garbo ou Marlene Dietrich. E, a bem do respeito identitário, devemos já limitar os papéis de Jodie Foster, Maria Bello, Kristen Stewart ou do próprio Diogo Infante, porque eles jamais iriam saber o que sente ou como vive um heterossexual. Condenou Samuel Adamson e Pedro Almodovar por escreverem e realizarem a peça “Tudo sobre a minha mãe”, num direito que não lhes assistia, relativamente a uma realidade que não conhecessem nem vivenciaram. Mas, Keyla, condenou-se a si mesma, quando sobe ao palco para “interpretar” uma mulher, que, afinal, não é!

A segunda parte da sua intervenção, já com a cortina em baixo e a peça interrompida, é um manifesto pessoal, alheio à causa e pleno de autocomiseração na procura de fama e de empatia. Diz Keyla que é actriz e que, como não consegue encontrar trabalho por ser transgénero “tem que chupar pau”. Este chorrilho distópico, em que a própria e outros tantos acreditam, são a perfeita negação da igualdade pretendida. Keyla Brasil não concorreu ao papel e não foi discriminada por ser transgénero (até porque o elenco contava com uma actriz transgénero – Gaya de Medeiros), assim como não é escolhida ou rejeitada para outros papéis por tratamento desigual. Essa escolha faz-se por mérito, por competência e por capacidade, sobretudo num meio tão aberto e progressista como o meio artístico. Reclamar papéis e trabalhos apenas em função do género é redutor, falacioso, uma perfeita bizarria e a completa negação da igualdade de oportunidades que reclama.

As dificuldades que Keyla encontra na sua vida profissional não serão, seguramente, em função do seu género, mas da profissão que escolheu. Todos sabemos que, em Portugal, e ressalvadas raríssimas excepções, todos os actores têm que “chupar pau” para sobreviver. E, infelizmente, essa obrigação estende-se a outros sectores profissionais, como o da professora de Vila Real, que foi colocada a setecentos quilómetros de casa, teve que dormir no carro, que limpar escadas e passar roupa para poder sobreviver. A diferença está no pau que se escolhe chupar…

E a manifestação do dia subsequente pouco veio ajudar à causa. Dos entrevistados que vieram dar voz às televisões, parecia que condição para se ser transgénero é andar-se andrajoso, pejado de “piercings”, saber conjugar uma barba farfalhuda com “eyeliners” e “batons”, não lavar o cabelo durante meses e falar como se lhe estivessem a fazer um exame à próstata. Deveria ser mais que isso. Deveria ser muito mais que isso, se pretendem afirmar a diferença entre o género sentido e o sexo genético. Poderia e deveria ter sido tanta outra coisa, a começar por uma manifestação de respeito pelos outros, num exercício de igualdade e de cidadania.

Mas também deveria ser uma demonstração por parte do Estado, que não discrimina ninguém perante a lei e que a Keyla Brasil teria exactamente o mesmo tratamento que qualquer outro cidadão incumpridor, independentemente do seu género…