A esquerda radical celebrou: a China tinha “superado” os Estados Unidos da América como principal potência económica mundial. Aquilo que a União Soviética, o “paraíso dos trabalhadores”, nunca conseguira, a República Popular da China acabava de alcançar. O império capitalista estava finalmente derrotado! Excepto num pequeno pormenor: era tudo mentira…
A festa começou quando o Fundo Monetário Internacional anunciou que a China iria ficar este ano em primeiro lugar no ‘ranking’ das maiores economias mundiais, quando considerado em paridade de poder de compra. Ora, este é um sistema de cálculo do PIB inventado para compensar as flutuações de moeda e poder de compra que se verificam de país para país.
Exemplificando: imagine-se que 10 portugueses ganham 100 escudos, e que 10 suecos ganham 100 coroas, ambas as moedas com convertibilidade similar. Para todos os efeitos ambos ganham o mesmo, o PIB é igual. Mas imaginemos que o custo de um pão em Portugal é de 100 escudos, e que o preço do mesmo produto na Suécia é 50. Então, na verdade, apesar de nominalmente ambos ganharem o mesmo, o sueco é duas vezes mais rico do que o português.
É isto que está a acontecer na China: em termos daquilo que os seus cidadãos podem comprar, hoje os Chineses compram mais bens e serviços do que os Americanos, mesmo que o valor desses bens e serviços não seja igual.
A razão pela qual o Partido Comunista Chinês não fez um alarido maior com este “sucesso” é óbvia: o seu verdadeiro (e gigantesco) atraso em relação aos Estados Unidos. Um país com mais de 4 vezes a população do outro, gasta o mesmo, o que significa que, apesar de tudo, o chinês comum continua a ser quatro vezes mais pobre do que um norte-americano.
Em termos de riqueza real, sem manipulações estatísticas, a República Popular da China continua muito atrás dos EUA e da União Europeia. Um chinês com um ordenado médio que visitasse qualquer país ocidental, até alguns dos países mais pobres da Europa, descobriria que não consegue verdadeiramente comprar nada.
Por esta razão é que os comunistas chineses não fizeram um grande alarido: sabem fazer contas. E estão preocupados…
Pequim versus povo
Já foi alvo de muita investigação, e continuará a ser, mas compreender a mentalidade chinesa, e em especial a do governo comunista chinês, não é fácil. Em geral, no entanto, muitos académicos consideram que a visão de uma China “triunfalista” e com desejo de esmagar o Ocidente não corresponde à realidade. Na verdade, o governo chinês vive no terror do “caos”, e está sempre com medo do colapso do próprio país.

Quando se olha para a História compreende-se esta visão. Depois de séculos de estabilidade (embora com bastante estagnação à mistura), o império Qing desmembrou-se, sendo substituído por um mapa de retalhos de senhores da guerra, movimentos separatistas e comunistas. Tentativas de criar uma “República da China” unificada falharam até 1947, quando a República Popular foi formalmente inaugurada por Mao.
Apesar de unificada, a China continua a ser uma manta de retalhos, com vários grupos linguísticos e étnicos coexistindo num mesmo espaço político. E o desmembramento da URSS em várias Nações-Estado serve como um aviso constante ao governo de Pequim. O regime vive aterrorizado pela perspectiva de desmoronamento do sistema e pela possibilidade, sempre presente, de golpes e revoltas. Por isso, ao contrário do que sucedia na extinta União Soviética, muitas das acções do governo chinês são mais destinadas a consumo interno do que a servir de “mensagens” para o Ocidente.
Internamente, o governo vive obcecado em mostrar aos mil e trezentos milhões de chineses a sua indispensabilidade, a convencê-los de que a China está finalmente “a apanhar” o Ocidente. O progresso económico cai nesta necessidade de mostrar progresso. O desemprego deve ser baixo, mesmo que as condições de trabalho sejam más e os ordenados miseráveis. A economia deve estar em crescimento contínuo, a qualquer custo.
Recessão seria fatal para o regime
Infelizmente para as ambições comunistas, o crescimento eterno e estável não é possível, pelo menos dentro das actuais limitações tecnológicas e humanas.
Ciclos económicos são normais em qualquer sistema económico. Nas economias capitalistas, vamos oscilando entre ciclos de grande entusiasmo económico (como, por exemplo, Portugal durante os anos 90) e períodos de recessão, quando os excessos cometidos durante a fase de entusiasmo são corrigidos pelo mercado.
A velha União Soviética tentou acabar com os ciclos económicos, instituindo um programa de “planos económicos” centralmente planeados, que iria, supostamente, criar o tal crescimento eterno. Os “planos quinquenais” deram origem a uma burocracia bizantina que conduziu a URSS à estagnação – e por fim, sem capacidade de corrigir os seus erros, ao colapso económico total.
Os países ocidentais tentaram uma abordagem mais prática ao problema dos ciclos. Para todos os efeitos, deixaram as recessões destruir as partes ineficientes da economia (“destruição criativa”) ao mesmo tempo que cimentaram o caminho para a retoma com investimento público, e acudiram ao sofrimento humano com subsídios de desemprego e apoios sociais.
A lógica keynesiana de “austeridade na expansão, incentivo na recessão” não foi bem seguida por todos os países, nomeadamente Portugal, que gastou desmesuradamente nos bons e maus tempos. Mas onde foi seguida funcionou razoavelmente. Muitas crises desde 1929 foram geridas de forma a mitigar o possível desastre total.
Mas suportar uma crise é impossível para o regime chinês: uma recessão, por mais pequena que seja, corresponde a admitir que o regime já não serve. O governo decidiu, então, fazer batota.
“Expansão” a qualquer custo
Apesar da “liberalização”, a economia chinesa continua sob controlo do governo. Muitos dos maiores grupos de energia eléctrica, fornecimento de água, indústria pesada e banca pertencem ao Estado, logo são obrigados a obedecer-lhe cegamente.
E Pequim usou esta arma com fartura. Bancos foram obrigados a emprestar dinheiro a empresas com projectos muito duvidosos, e entre os casos de projectos mais duvidosos encontram-se as empreitadas de construção megalómanas que apareceram no “reino do meio” como cogumelos.
Cidades inteiras foram construídas a um ritmo intenso, tudo com apoio indirecto do Estado para se manter uma baixa taxa de desemprego. Fábricas foram expandidas, maquinaria pesada adquirida, barragens e centrais eléctricas erigidas, auto-estradas pavimentadas, tudo em tempo recorde. A sede de expansão a qualquer custo foi tal que os chineses se tornaram os maiores consumidores de aço e betão do planeta (chegaram a consumir metade de toda a produção mundial).
O único problema é que todo este progresso está a demorar a chegar ao povo da República Popular. A corrupção é endémica e a desigualdade cresceu desmesuradamente. Embora esteja a ser produzida muito mais riqueza, ela está a ser mal distribuída – muito pior do que nos piores “infernos capitalistas”.
Na verdade, 1.300 milhões de chineses consomem tanto como 300 milhões de norte-americanos. Os baixíssimos ordenados, política do regime para atrair investimento, criaram uma situação em que muitos chineses não podem comprar aquilo que o seu país produz.
Os outros, aqueles que conseguiram subir na escada económica chinesa, usam o seu dinheiro no pouco em que podem investir: casas.
O regime chinês, tal como a generalidade dos regimes comunistas, ignorou por completo a cultura do país que dirige, onde a frugalidade e a poupança ainda são valores importantes. O dinheiro da nova classe média não foi canalizado para bens de consumo, mas sim para investimento: títulos do tesouro e dívida pública (muita dela de outros países).
Casas e crédito malparado
Em vez de adaptar os seus planos à realidade, Pequim subjugou os cidadãos à teoria, limitando o escopo das oportunidades de poupança. E os cidadãos responderam, transitando dos produtos financeiros para o imobiliário. Algumas famílias de classe média chegam a ser donas de 11 casas, que ficam depois vazias, enquanto famílias paupérrimas de trabalhadores apenas conseguem abrigo em bairros de barracas.
No Ocidente, este desequilíbrio seria naturalmente corrigido pelo mercado: o preço das casas desceria até haver comprador. Na China, isto não é possível. Caso o preço das casas caia, milhões de cidadãos vão perder as suas poupanças e milhões de empreiteiros apoiados pelo regime vão vender propriedades por um valor menor do que o do empréstimo que fizeram para construir. A possibilidade de crédito malparado é enorme.
Em reacção, Pequim limitou o número de casas que cada família pode comprar, o que não soluciona o problema. É o género de remendos que o regime comunista chinês tanto gosta de fazer, fugindo a verdadeiras reformas estruturais. Um dos maiores problemas com que a China se debate é o sistema de justiça, enormemente ineficiente, corrupto e politizado. Mas pouco está a ser feito para o reestruturar.
No outro lado do Mundo, houve um pequeno país chamado Portugal cujo regime cometeu erros semelhantes. E ainda está a sofrer por causa deles.
Desinvestimento estrangeiro
Por toda a China há empreendimentos embargados, muitos deles torres megalómanas e fábricas que nunca serão inauguradas: não há capital para as terminar.
Tal como sucedeu na União Soviética, a gestão centralizada de um enorme território económico revela-se totalmente ineficaz. Apesar dos esforços do regime, as taxas de crescimento de dois dígitos não parecem regressar; de facto, este ano o crescimento da economia deverá manter-se nos 5%: respeitável, mas nada de extraordinário quando comparado com os 3,4% dos EUA.
O ‘Wall Street Journal’, publicação norte-americana conhecida pela sua voracidade editorial por economias em dificuldades (Portugal chegou a ter direito a artigos diários durante vários meses), avisa que o investimento estrangeiro com que Pequim contava está a desaparecer. Existe mão-de-obra mais barata noutros países, e o mercado chinês, por escolha do regime, não é tão atractivo como seria desejável.
Nos anos 80, também se acreditava que a União Soviética era uma enorme potência. Os comunistas veneravam-na como gigante imbatível. Os alarmistas anunciavam que iria em breve “superar” o Ocidente. Os poucos que avisavam sobre a verdadeira miséria e fantochada que se passava no “paraíso dos trabalhadores” eram considerados loucos ou demagogos.
Só quando o império soviético entrou em colapso se descobriu que não passava de um tigre de papel, mantido em pé apenas pela existência de um regime totalitário. Será a China o tigre de papel do século XXI?