Com o Mundo a viver tempos de pandemia grave, e ainda sem fim à vista, a revelação de que o ‘lobby’ farmacêutico boicotou uma investigação que podia ter evitado milhares de mortes em todo o Mundo, faz com que mais uma vez o cidadão comum sinta que as farmacêuticas apenas se movem pelo lucro, adoptando posturas anti-éticas. E dizemos “mais uma vez” com propriedade: recorde-se que aquando da pandemia de SIDA os laboratórios pediam valores absurdos pelos medicamentos inovadores, o que levou o Brasil e a Índia a quebrarem as patentes, numa altura em que o número de infectados subia em espiral.
“Ficámos indignados ao encontrar provas de que o ‘lobby’ da indústria farmacêutica, a EFPIA – European Federation of Pharmaceutical Industries and Associations – não só não considerou o financiamento da bioprevenção, ou seja, estar pronto para responder a epidemias como a causada pelo novo Coronavírus, Covid-19, como se opôs a que a mesma fosse incluída nos trabalhos da Iniciativa de Inovação Médica (IMI) quando essa possibilidade foi levantada pela Comissão Europeia em 2018”, lê-se nas conclusões de um estudo citado pela Lusa.
Segundo o relatório “Mais privada do que pública: como as grandes farmacêuticas dominam a Iniciativa de Inovação Médica ”, integrado num documento mais amplo denominado “Em nome da Inovação”, elaborado pela Global Health Advocates (GHA) e pelo Corporate Europe Observatory (CEO), duas ONGs de referência, a indústria farmacêutica beneficiou de 2,6 mil milhões de euros do orçamento público de investigação da UE no período compreendido entre 2008 e 2020, através da IMI, “mas até agora falhou em investir significativamente em áreas de pesquisa onde o financiamento é urgentemente necessário”.
A GHA e o CEO sublinham que, entre as áreas negligenciadas que necessitavam de um financiamento significativo, estão “a prevenção para epidemias, incluindo as causadas pelos Coronavírus, o HIV/SIDA e as doenças tropicais relacionadas com a pobreza”, mas que, em vez disso, “a indústria farmacêutica usou sobretudo o orçamento para financiar projectos em áreas que eram comercialmente mais rentáveis”.
Caso SARS
As duas ONG assinalam que, desde que surgiu o Coronavírus SARS, “um primo chegado do novo Coronavírus”, em 2003, os investigadores têm pedido que seja acelerado o desenvolvimento de tecnologias médicas para combater este tipo de vírus.
“Na verdade, já houve um ‘candidato promissor para tratar coronavírus em 2016’, mas não captou a atenção das grandes farmacêuticas para mais desenvolvimentos”, acusam as duas organizações sem fins lucrativos. E acrescentam: “Só agora, com uma pandemia global em curso e quando existem fundos públicos mobilizados para combatê-la, é que a indústria está a mostrar vontade de ajudar a desenvolver vacinas e tratamentos”.
De acordo com as ONG, a indústria farmacêutica já tinha tratado o Vírus Ébola de forma semelhante, uma vez que só se dedicou à sua investigação quando se tornou uma epidemia em 2014, e depois de a IMI ter começado a financiar projectos. “Esse caso mostra como intervenções tardias, quando uma epidemia já está em andamento, são muito menos úteis do que o tipo de bioprevenção que a indústria rejeitou”, sublinham.
Marine Ejuryan, da GHA, considerou que, face à actual crise, “é expectável” que Bruxelas coloque a bioprevenção entre as prioridades do financiamento de projectos nas próximas PPP da área da investigação na saúde. Contudo, realçou que “é demasiado pouco e demasiado tarde investir em epidemias após surgirem”, e que uma “resposta efectiva requer tempo e investimentos sustentáveis para garantir que existem as vacinas e tratamentos necessários quando surgem os surtos epidémicos”.
Sobre a postura das grandes farmacêuticas, a especialista considerou que “muitas multinacionais estão agora envolvidas na pesquisa da vacina e de tratamentos contra o coronavírus, uma vez que já existem enormes quantias de financiamento público mobilizado na União Europeia e a nível global. Mas não necessariamente por razões altruístas”, acusa Marine Ejuryan.
Por seu turno, Martin Pigeon, investigador do CEO, considerou que “já é tempo de a política de investigação e inovação da UE receber o escrutínio político e os debates que merece”, a bem do interesse público. “O que está em jogo aqui é a captura corporativa de grandes áreas da política e dos orçamentos de pesquisa da UE, à custa das necessidades públicas, da nossa saúde e da saúde do nosso planeta”, destacou. “O financiamento público da pesquisa e inovação é um investimento na produção de conhecimento e ferramentas para o futuro, e, num momento de crise em curso, acertar esses investimentos é mais crucial do que nunca”.
PPP prejudicam UE
As duas organizações não-governamentais criticam assim duramente as PPP na área da investigação da União Europeia, com base em relatórios que apontam para o benefício dos privados face ao interesse público. “Dois relatórios exaustivos sobre as PPP da investigação na União Europeia mostram um ambiente institucional que assegura “privilégios e vantagens” para o sector privado, e “deveres e obrigações para o sector público”, realçam a GHA e o CEO.
Estas ONG assinalaram que, durante os últimos 15 anos, os grupos de ‘lobbying’ das indústrias da saúde e do ambiente “controlaram, dominaram e beneficiaram de 3,7 mil milhões de euros de fundos de investigação da UE destinados a medicamentos e ao clima através das PPP, à custa do interesse público”.
No documento das duas ONG, “Em nome da Inovação”, que junta os relatórios “Mais privada do que pública: como as grandes farmacêuticas dominam a Iniciativa de Inovação Médica”, e “Investiga e Destrói, as fábricas da indústria bioeconómica ameaçam o clima e a biodiversidade”, as entidades destacam que há “implicações preocupantes para a defesa do interesse público” na gestão das PPP europeias, financiadas pelo dinheiro dos contribuintes.
Os autores do relatório salientam a “negligência da preparação para pandemias, até à alimentação da desflorestação e das mudanças climáticas”, vincando que as grandes empresas europeias pretendem manter esta situação no próximo Orçamento da UE (sob o ‘Horizon Europe 2021-2027). “As nossas revelações mostram que estas estruturas das PPP permitem às indústrias participantes controlarem a utilização de milhares de milhões de euros de fundos públicos de investigação, sem qualquer retorno claro e provado para os cidadãos da UE”, assinalam as ONG.
Segundo as organizações, o próprio desenho destas PPP, “ainda mais do que os abusos que foram documentados”, significa que, no sector da saúde e da bioeconomia, estas parcerias “não servem o interesse público, mas simplesmente o interesse de curto prazo dos industrialistas”. ■