ODIABO600x200PEDRO A. SANTOS

Pagam mais impostos do que quem trabalha para um patrão. São vítimas de um código fiscal pesado e de um sistema judicial inoperante. A situação dos trabalhadores independentes envergonha os legisladores e a classe política.

Se o português com emprego certo e ordenado fixo se pode queixar da carga fiscal em vigor no nosso País, que dirão os trabalhadores independentes? Sobre estes “servos da gleba” do século XXI abate-se, implacável e insaciável, a máquina de taxação do Estado: são dos cidadãos que pagam mais impostos em Portugal. São de tal forma esmifrados que, para ganharem o mesmo valor líquido que um trabalhador por conta de outrem, têm de ter rendimentos brutos muito superiores.

A Segurança Social define “trabalhador independente” como a “pessoa singular que exerça actividade profissional sem sujeição a contrato de trabalho ou a contrato legalmente equiparado, ou se obrigue a prestar a outrem o resultado da sua actividade”.

Abrangidos por este regime estão os portugueses com actividade profissional de prestação de serviços (incluindo carácter científico, literário, artístico ou técnico), comercial ou industrial, os membros de sociedades de profissionais livres, muitos agricultores e empresários em nome individual com rendimentos decorrentes de actividade comercial e industrial.

Dados do Instituto Nacional de Estatística indicam que existem em Portugal cerca de 3 milhões de trabalhadores independentes. A saga destes contribuintes começa na diferença de tratamento, por parte do Fisco, face aos trabalhadores por conta de outrem. O DIABO fez um exercício de cálculo para determinar quanto tem um independente de auferir para levar para casa, ao fim do mês, o mesmo rendimento líquido que um trabalhador com patrão. O resultado é assustador.

Fizemos as nossas contas com base no valor que o Instituto Nacional de Estatísticas considera o rendimento médio líquido dos portugueses: 984 euros. Para um trabalhador independente auferir esse dinheiro, tem de ganhar 1.620 euros brutos por mês; já o trabalhador por conta de outrem, para ganhar o mesmo, só tem de receber 1.300 euros mensais brutos, ou até mesmo só 1.150 euros se tivermos em conta que recebe 14 meses, enquanto que os independentes, no máximo, só podem receber 12. É uma diferente de 300 euros numa perspectiva, e de quase 500 euros na outra. Porque é que existe esta profunda discrepância?

29,6% só para a Segurança Social

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Uma das razões é, precisamente, a diferença no número de meses de recebimento: os trabalhadores por conta de outrem não recebem 12 meses, mas sim 14, devido aos subsídios de férias e de Natal a que têm direito. Os trabalhadores independentes não têm esse direito: logo, para ganharem o mesmo, têm de fazê-lo em apenas 12 meses.

Mas esta é apenas uma pequena peça do ‘puzzle’. A estranha política fiscal existente em Portugal ajuda a compreender o resto.

Tanto os trabalhadores por conta de outrem como os trabalhadores independentes descontam para a Segurança Social e para o Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares.

O problema está na forma como os descontos são feitos. Na vasta maioria dos casos dos trabalhadores por conta de outrem, esta “taxa sobre o trabalho” é cobrada a 34,75%, mas um empregado apenas paga 11% sobre o seu rendimento, sendo que a entidade empregadora fica responsável pelos restantes 23,75%.

Apesar de não dependerem de qualquer entidade empregadora, os trabalhadores independentes têm de pagar à Segurança Social a totalidade das taxas cobradas aos seus congéneres que trabalham para um patrão. Se estiver com intenções de trabalhar por conta própria, prepare-se: só a Segurança Social vai extorquir-lhe 29,6% do rendimento do seu esforço.

Mas a loucura não acaba aqui. Enquanto os trabalhadores por contra de outros são taxados em proporcionalidade com os seus rendimentos, os trabalhadores independentes pagam a Segurança Social segundo um sistema peregrino, certamente inventado por algum “brilhante” burocrata em Lisboa, que apenas é semi-proporcional.

Este sistema de sangria é baseado em onze escalões, e cada trabalhador é consignado a um deles conforme o cálculo de 70% dos seus rendimentos mensais. Mas dentro de cada escalão não existe proporcionalidade.

É irrelevante, por exemplo, se um trabalhador independente ganha por mês 1.200 euros ou 1.400 euros: em ambos os casos a contribuição que deve ser entregue ao Estado é sempre de 248 euros.

Sentença burocrática

O anterior governo decidiu tentar ajudar, mesmo que apenas um pouco, os trabalhadores independentes: desde 2014 é possível pedir a alteração do escalão a que se é consignado, podendo este subir ou descer duas categorias. Mas, como em tudo na (in)Segurança Social, não é um processo simples.

O pedido apenas pode ser feito em Fevereiro ou Junho. Isto é: se, por exemplo, o contribuinte independente perder uma das suas prestações de serviço e vir o seu rendimento cortado em metade no mês de Julho, vai ter de continuar a pagar durante sete meses o mesmo que pagava antes, enquanto aguarda a análise do seu requerimento. E não há garantia de que o pedido seja aceite.

Mas, mesmo que o seja, o trabalhador terá de esperar por uma decisão da Segurança Social, um órgão conhecido pela sua “velocidade” burocrática. Contou-nos José, 59 anos, que andou de repartição em repartição até conseguir entregar o seu pedido, tento esperado depois seis meses por uma decisão.

Cristina, 26 anos, quase desesperou: “Passei dias inteiros na Segurança Social, as senhas às vezes desaparecem logo às oito da manhã, e depois é esperar e esperar, muitas vezes até à tarde. Em mais do que uma vez para nada”.

E até à fatídica, e demorada, sentença burocrática, é exigido ao trabalhador que continue a pagar a mesma taxa, mesmo que esteja a receber menos do que tem a pagar à Segurança Social. E não se pense que não pagar é uma opção: as sanções aplicadas ao incumprimento são pesadas. “Durante aqueles seis meses passei mal, não sabia como conseguiria pagar”, contou-nos José, que no fim viu o seu pedido recusado.

A generalidade dos contribuintes independentes ouvidos pel’O DIABO teve o seu pedido recusado, visto a descida de escalão ser analisada com base nos dados do IRS de há dois anos atrás – o que dificulta a vida de quem não tem rendimentos fixos. “Cada entidade paga quando quer, até já me pagaram semestralmente”, refere José. “Tenho clientes que me pagam mensalmente, outros trimestralmente” contou-nos Fernanda. No caso de Cristina, ainda é mais errático: “pagam quando o trabalho estiver feito”.

A situação pode-se tornar tão sufocante que existem casos como o de José, que foi forçado a contrair uma dívida junto de uma empresa de créditos para pagar as taxas da Segurança Social. Ainda está a pagar essa dívida.

SS+IRS

3A agravar a situação, muitos daqueles que são oficialmente considerados trabalhadores independentes são-no contra a sua vontade: é a vergonha dos “falsos recibos verdes”. Neste sistema, um patrão, para se livrar dos encargos com a Segurança Social, exige ao empregado que se constitua como um trabalhador independente, tendo de arcar com as respectivas contribuições. A alternativa, geralmente, é o desemprego.

Centenas de milhares de portugueses submetem-se a horários de trabalho e recebem ordenados fixos, algo que por lei exigiria um contrato, mas mantendo o regime de trabalhadores independentes. Tanto José como Cristina confirmaram-nos que já foram forçados a aceitar trabalhar desta forma, ambos tendo noção da sua ilegalidade, mas cientes de que a alternativa era dizer adeus ao emprego.

E como se esta situação não fosse grave o suficiente, para “tramar” ainda esta classe de contribuintes existe o facto de a Segurança Social e o Fisco não estarem coordenados no caso dos trabalhadores independentes.

A cobrança do IRS segue uma fórmula simples: à medida que um trabalhador aufere mais dinheiro, mais sobe no escalão e mais imposto paga em percentagem. Mas a Segurança Social apenas faz o mesmo com os trabalhadores por conta de outrem: nos outros casos, cobra uma taxa fixa.

Para um trabalhador independente auferir o mesmo rendimento líquido que um congénere que trabalha para outros, tem de ganhar mais, pois a Segurança Social exige-lhe mais dinheiro.

O que acontece é que o IRS é calculado com base no rendimento global do cidadão, e não os 70% da Segurança Social. Não só o trabalhador tem de pagar mais à Segurança Social, mas também irá pagar mais de IRS, pois o rendimento extra que tem de auferir é taxado de forma mais intensa pelo Fisco.

Na simulação feita por O DIABO, o rendimento de 1.620 euros (que dava 984 euros líquidos ao nosso trabalhador simulado) foi taxado a 20% pelo Fisco. Já o trabalhador por conta de outrem apenas foi taxado a 15,5%, uma diferença de 4,5 pontos percentuais – ou seja, 1.393 euros por ano, ou 116 euros por mês.

Em suma, conclui-se que um trabalhador independente paga 39% em impostos só sobre o seu trabalho, enquanto um trabalhador por conta de outrem paga “apenas” 27%.

Direitos?

Seria expectável que, depois deste “massacre” fiscal, ao menos os trabalhadores independentes tivessem direito às mesmas benesses que os seus compatriotas. Pura ilusão. Aqueles que têm de trabalhar por conta própria, muitas das vezes em regime de “falsos recibos verdes”, não têm direito a subsídio de desemprego.

Um trabalhador independente com actividade empresarial pode, é certo, pedir um pequeno subsídio em alguns casos específicos, como a cessação involuntária de actividade ou a insolvência. Mas se é um prestador de serviços não tem direito a um cêntimo.

O trabalhador independente não poderá auferir do rendimento mínimo, famosamente inventado por António Guterres e entretanto rebaptizado como Rendimento Social de Inserção, e que tantos “smartphones” financia nos bairros sociais deste país, enquanto trabalhadores passam situações de desespero.

Nem a férias tem direito: “Eu faço férias, mas é nos períodos de inactividade forçada, quando está tudo parado, e não recebo durante esse tempo”, confirma Fernanda. Já Cristina apenas vai tirando uns dias aqui e ali, “senão não ganho”. E José já não faz férias a sério há dois anos.

Segundo as últimas estatísticas, Portugal é o terceiro país da União Europeia com mais trabalhadores independentes. Apesar dos discursos políticos que tanto enaltecem o “empreendedorismo”, os “empreendedores” continuam a ser discriminados por um sistema fiscal profundamente injusto: uma imensa barreira à modernidade e à independência dos cidadãos.

É talvez Cristina quem o resume melhor: “Somos propriedade do Estado, eles tiram-nos o que querem, dão-nos o que querem, não temos voz. Ainda dizem que são estas as conquistas de Abril”.

Nota: O DIABO falou com alguns trabalhadores independentes para conhecer os seus casos. Os seus nomes verdadeiros foram ocultados para evitar retaliações. Em Portugal, a liberdade de expressão pode sair cara a quem não é privilegiado.