VENTURA LEITE

Economista

O colapso do sistema bancário italiano, desfalcado em 360.000 milhões de euros de empréstimos mal parados, pode alastrar à França e pôr em causa toda a Banca europeia. É imperioso abandonar a ideia errada de que numa crise como a actual são os mercados que promovem o crescimento. Os mercados estão à espera, isso sim, de decisões estratégicas. E urgentes.

Tenho escrito diversos artigos alertando para duas realidades muito críticas e interligadas. Defendo e insisto que a Europa terá que assumir uma solução global para o problema das dívidas públicas diferente da via da austeridade, para que os governos possam desempenhar um papel determinante numa estratégia de crescimento, sem o qual as dívidas nunca, repito, nunca se pagarão. Claro que isso terá que ser concretizado com um compromisso muito sério e com consequências inequívocas para os que falharem!

Porque não será  possível ultrapassar uma dívida sem capacidade para a pagar? Já assinalei que a dívida pública e privada (famílias e empresas) europeias  andava, no ano passado,  pelos   370-375% do PIB  europeu, sendo que a dívida pública não ia além dos 90-100% do PIB, o que significa que sem uma nova estratégia de crescimento andamos às voltas como alguém perdido numa floresta. Tenho dito que a política monetária europeia é errada do ponto de vista do objectivo de estimular o crescimento diante desta estrutura da dívida total, uma vez que a dívida privada é muito maior do que a pública.

Ou seja, é imperioso e urgente abandonar a ideia errada de que numa crise como a actual são os mercados que promovem o crescimento. Os mercados estão à espera, isso sim, de decisões estratégicas!

Um estudo recente do Mckinsey Institute concluía que uma das áreas em que era urgente os países apostarem é a da modernização das infra-estruturas, não porque estejam todas a cair, mas porque não são auto-sustentáveis. É necessário apostar em infra-estruturas que sejam eficientes em termos de custo/benefício para a economia: isso envolve quase uma reconstrução do planeta, pois o Instituto estima serem necessários investimentos na ordem dos 40-50 triliões de dólares, quando o PIB mundial anda na casa dos 70 triliões (novas linhas férreas, pontes, estradas de 4ª geração, aeroportos e portos, sistema de tratamento de água, de resíduos, de nova geração de linhas de transporte de energia, centros de formação, telecomunicações, etc.).

O Instituto publicou recentemente um outro estudo que aponta para o facto de a Europa estar abaixo do seu potencial de digitalização da economia em comparação com outras regiões do planeta. Chama a atenção para a necessidade de definição de estratégias de crescimento a longo prazo por parte dos governos, dando o exemplo de Singapura, porque a capacidade de processamento de cada vez maiores quantidades de informação (Big Data) é que vai definir a vantagem competitiva das nações e das suas economias.

Depois, tenho chamado a atenção (há alguns anos) para o maior risco para o conjunto da economia, nacional e europeia, que é a situação da banca nacional e europeia. Porquê? Porque numa economia que cresceu sobretudo com recurso à dívida, esta teve que ser financiada através dos bancos. E, quando esta bolha de crédito estoura por desencontro inevitável entre a capacidade de crescimento económico e o serviço da dívida, os bancos são os primeiros afectados, e com eles arriscam igualmente os seus depositantes. Como é óbvio, isto não invalida a responsabilização das administrações pela má gestão do crédito!

Só pode piorar

Para que a banca sobreviva numa crise como esta só as garantias e apoios financeiros dos governos aos bancos têm evitado que sejam os depositantes a resgatarem os bancos com os seus depósitos (embora acabem depois por ficar sem o dinheiro por causa dos impostos adicionais que terão que pagar ao Estado). Em Chipre, no entanto, os depositantes foram os primeiros europeus a serem sacrificados.

Ou seja, hoje já se assume claramente que, para além dos contribuintes, outros sofram as consequências dos desmandos dos bancos: começando pelos seus credores, ou seja, instituições  que emprestaram  à banca e que agora serão chamadas a resgatá-los, ou, por outras palavras, ficarem sem os seus créditos (ou ficando com estes transformados à força em capital social do banco), o que significa que milhões de aforradores que colocaram as suas poupanças nessas instituições financeiras (fundos de pensões) irão perder parte ou a totalidade das suas poupanças. Foi por esta razão que o governo irlandês resgatou a sua banca, falida por causa do crédito imobiliário.

Como se calcula, o capital dos accionistas não chega para tapar os actuais buracos da banca que ficou falida quando muitos dos seus devedores começaram a deixar de pagar os empréstimos. Até aqui nada de especial, dirá o leitor. Pois não. O problema é que ninguém  nos fala dos problemas potenciais, ou até já reais, aqui ou no estrangeiro, a não ser quando surgem.

Em Portugal, só mais recentemente se começou a perceber o estado da nossa banca. Quase todos os dias sentimos que a nossa banca está largamente falida. Agora já não é novidade. Ainda há dias o actual ministro das Finanças de Portugal  dizia que o anterior Governo era responsável por um buraco de mais de 3.000 milhões de euros na Caixa Geral de Depósitos. Mas não explicou mais. A falta de pudor e de vergonha dos nossos políticos não vai deixar de aumentar com a luta entre os partidos à medida que o desespero vai tomando conta dos governantes e líderes políticos.

Sabíamos que nenhum Governo foi capaz de assumir os problemas de frente, e agora o espectáculo só pode piorar. Isto também não é surpreendente.

Enfrentar os problemas

Este meu artigo precisava desta introdução para chegar ao ponto que queria deixar aqui. As coisas estão a seguir o seu caminho e, finalmente, nestes dias já se fala mais abertamente da iminência de falência da banca italiana.

Sim, as autoridades europeias e italianas estão em negociações para se evitar o colapso do sistema bancário italiano, que apresenta 360.000 milhões de euros de empréstimos mal parados (o equivalente a cerca de 18% dos seus activos, contra uns 12% em Portugal, e um pouco mais na Alemanha e França). Isto é, os bancos italianos estão tecnicamente falidos. Por outras palavras, têm um valor de crédito malparado superior ao seu capital social (dos accionistas), que não ultrapassará na melhor das hipóteses os 10%. A quebra do valor das acções dos bancos italianos (e não só!)  tem sido brutal e reflecte a ideia negativa dos mercados relativamente ao valor real dos bancos.

Para que serve então esta introdução? Para chamar a atenção para o facto de todos mentirem sobre a gravidade da situação que hoje vivemos. A começar pelos bancos centrais a mentirem sobre a situação dos bancos, desde os chamados testes de ‘stress’ até às declarações mais recentes (quem não se lembra do Governador do Banco de Portugal a dizer que o sistema bancário estava forte?).

A Europa tem evitado enfrentar os problemas, mas quando eles atingem a dimensão dum Brexit, e agora da crise bancária italiana, já não será possível fugir mais aos seus problemas cruciais. Já não são os problemas da Grécia, de Portugal ou dos refugiados, mas da sobrevivência financeira da Europa. Por isso, prevejo uma evolução potencialmente telúrica. Se me lembrar da forma como evoluiu a crise na minúscula Grécia e a forma como foi tratada pelas autoridades europeias, eu diria que há um estado de negação que visa evitar o pânico, mas que acaba por ser mais descredibilizador para os governantes e líderes europeus. O Brexit é o resultado duma política umas vezes falsa, outras vezes incompetente, da União Europeia.

Como escrevi antes do referendo no Reino Unido, qualquer que fosse o resultado do referendo, isso não seria nem o princípio nem o fim de nenhum processo fundamental, mas um acontecimento que é parte dum processo que coloca o futuro do projecto europeu em causa. Os próximos problemas e a forma como a Europa vai lidar com eles, será indicador da capacidade que resta na Europa para se evitar o pior.

E se alastra à França…

Sobre a crise  da banca italiana, fala-se dum apoio europeu sob a forma de autorização para uma ajuda governamental de cerca 150-180 mil milhões de euros em dinheiro (injecção para capitalização) e garantias do Estado à obtenção de recurso por parte dos bancos italianos. Sabemos que os números iniciais estimados para as intervenções são raramente suficientes.

Consequência? Os contribuintes italianos vão ser chamados, e vai-lhes ser aplicada a mesma receita já conhecida.

E se depois o processo alastra à França, bem podemos ter mais promessas de referendos…

Tenho uma curiosidade: como chegaram os bancos italianos a uma tão monstruosa soma de empréstimos malparados, quando nunca se falou em bolha imobiliária em Itália?

A Europa está como uma barata tonta quando se acende a luz. E tenho pena, porque o projecto europeu era uma alternativa necessária aos blocos económicos, militares e culturais que conhecemos. Mas para isso não podia ficar na mão de politicamente correctos e irresponsáveis, e os cidadãos europeus não podiam ficar anestesiados. Têm urgentemente que ser chamados a tomar posição.

Preparemo-nos, pois, porque os cenários reais costumam ser piores do que as minhas previsões (pessimistas, como alguns amigos costumam dizer-me.) Mas como posso ser positivo neste quadro, e simpático? Pelo tanto que temo para os meus filhos e netos, muito gostaria que esses amigos tivessem razão!